Pra que serve um português imexível?
Nossa compreensão de ‘certo’ e ‘errado’ segue pautada por um modelo canônico e engessado de português, não pelo português vivo e reinventado por seus falantes.
Mulher das Letras que sou, sempre me deparo com situações que demonstram o quanto o nosso conhecimento do português é atravessado por noções opressoras e elitistas de “certo” e “errado”. E isso decorre, em boa medida, da nossa pouca familiaridade com a história do idioma e a experimentação verbal produzida tanto por escritores, esses cientistas da palavra, quanto pelo vários grupos que compõem o povo, esse “inventa-línguas”, na expressão do poeta russo Maiakóvski.
Dia desses, o revisor de um texto que escrevi devolveu meu texto corrigindo a passagem em que eu havia colocado “me emperequetei toda” por “me emperiquitei toda”.
É até difícil falar em voz alta essa versão corrigida, mas, mais do que isso, me soou bastante incômodo o revisor querer estabelecer uma associação entre o vocábulo que usei e a palavra “periquito”. Não era essa a imagem que eu tinha em mente, “adornar-se como um periquito”, e sim “adornar-se de maneira exagerada”, ideia reforçada por esse vocábulo esquisistranho que eu amo amar, “emperequetar”.
Fui atrás dos dicionários para ver se entendia a motivação da correção e qual meu espanto ao perceber que “emperequetar”, por mais que seja a palavra em uso nos espaços todos que frequento, sequer estava registrada, ao passo que “emperiquitar” sim? Ali me dei conta de que as duas palavras eram, na verdade, variantes da mesma e que “emperiquitar” era a mais antiga, a legítima, origem dessa que agora soava única aos meus ouvidos.
O tempo de resposta era curto, eu tinha sido pega de surpresa por desconhecer o parentesco entre os dois vocábulos, acabei acatando a correção, por mais que “emperiquitar” fosse palavra que eu jamais diria. E é esse o ponto. Nossa compreensão de “certo” e “errado”, a compreensão que motivou a correção e que me fez acatá-la, segue pautada por um modelo canônico, engessado de português e não por esse português vivo constantemente reinventado por seus falantes.
Daí o riso que desencadeiam as palavras “menas” (curiosíssima, maravilhosa, reveladora de o quanto sentimos necessidade de pôr gênero em tudo no português, inclusive em advérbios), “estrupo” (e nisso se percebe o quanto violência sexual pode ser motivo de riso, caso a denúncia não se expresse em conformidade com as normas vigentes do português) ou mesmo “frecha” e “táuba de tiro ao álvaro” da música de Adoniran Barbosa.
Tivessem essas mesmas palavras sido usadas por Guimarães Rosa e seriam exemplo belíssimo de invenção literária, mas na boca das camadas populares esse português só serve para escárnio e descrédito. A retidão da regra foi tão mas tão internalizada, que os mesmos que escarnecem e desacreditam tais variantes sequer sabem explicar a razão de a norma culta entendê-las como erro.
Por que “flecha” e não “frecha”, por exemplo?
Na Carta de Achamento do Brasil é essa última a expressão utilizada por Pero Vaz de Caminha, assim como “frauta” e “crara” (ao invés de “clara”). As escolas há gerações vêm se especializando em nos ensinar, de forma acrítica e mecânica, as regras de um português morto, ensino que só nos faz acreditar que o idioma não é nosso, não nos pertence.
“Floresta” só é hoje “floresta” porque algum dia seus usuários acharam que a palavra tinha a ver com “flor”: o francês antigo, de onde ela vem, diz “forest” (hoje “forêt”), afim ao inglês (“forest”) e ao italiano (“foresta”). Só em português e espanhol, idiomas da Península Ibérica, surge esse L interessantíssimo, fruto da imaginação dos falantes. “Buceta”, “viado”, “ferpa”, “sombrancelha”, “própio”, “poblema”, “impreguina”, “porque” junto ou separado, os exemplos são muitos e a resposta é sempre cagação de regra e a tentativa de manutenção dessa norma elitista, racista e misógina.
João Doria, a respeito dos áudios vazados de Aécio Neves, condena não a revelação da obstrução da justiça, do caixa dois, do abuso de poder, mas o uso “estarrecedor”, “absolutamente lamentável” das “palavras de baixíssimo calão”. O blog do Josias de Souza, para além de denominar esse momento histórico de “striptease moral” (a dança erótica do striptease sendo usada como metáfora pra corrupção política) e o áudio entre Temer e Joesley de “conversa vadia”, refere-se à expressão de Joesley “pra mim falar contigo” como “idioma muito parecido com o português”.
Só espero que um dia a frase “o salário do trabalhador é imexível” não fique pra história apenas por conta desse neologismo delicioso, saborosíssimo criado por Antônio Magri, Ministro do Trabalho nos anos 1990 e um dos envolvidos no escândalo de corrupção que terminou no impeachment do presidente Collor, mas também pelo significado da frase ter se tornado fato ou por termos sido capazes de depor os poderosos que quiseram impedir isso de acontecer.
Fora Temer!