Por uma cozinha antirracista
Cozinha antirracista expõe desigualdades históricas, valoriza saberes negros e questiona quem tem prestígio na gastronomia
Dos tabuleiros às estrelas Michelin, há um abismo. Estrelas que não contam a história do céu, mas estrelizam um protagonismo branco nas grandes cozinhas e relegam, à meia-luz de pias e boquetas, os diplomas conquistados pela negritude. Essa distância desenha o mapa desigual da gastronomia brasileira, onde prestígio e reconhecimento nunca foram distribuídos de forma imparcial. A elite culinária se consolidou a partir de escolhas que ignoraram saberes ancestrais, enquanto técnicas sustentadas por mulheres negras permaneceram confinadas à esfera da obrigação — e não da autoria. O brilho do salão, muitas vezes, só existe porque alguém permaneceu na sombra.
A história das mulheres negras nas cozinhas é contada pelas amas de leite, doceiras de compota, baianas de acarajé, merendeiras e marmiteiras. O que elas têm em comum? A marca da desigualdade que, ao longo do tempo, as destituiu de sua intelectualidade e as prendeu a um sistema de servidão. São mulheres que alimentaram o país com memória, rigor e técnica, mas cujos nomes foram deixados de fora das narrativas oficiais. A cozinha brasileira se ergueu sobre seus ombros, mas a história nacional insistiu em reduzir seus saberes a uma suposta vocação natural, esvaziando a dimensão intelectual de suas práticas.
Discutir a luta antirracista no sistema alimentar é sacudir as toalhas que encobrem o pacto narcísico da branquitude que sustenta o racismo estrutural brasileiro. A comida, tantas vezes tratada como afeto, tradição ou estética, revela fraturas profundas quando analisada com atenção. Cada prato carrega hierarquias silenciosas, desigualdades acumuladas e escolhas políticas que definem quem come, como come e o que chega à mesa. Em um país onde a fome ainda é rotina para milhões, falar de cozinha antirracista não é retórica. É urgência — e recuo nenhum é possível quando o alimento se torna evidência de injustiças que atravessam séculos.
A frase de Lélia Gonzalez — “mulher negra, naturalmente, é cozinheira, faxineira, servente, trocadora de ônibus ou prostituta” — expõe a naturalização de papéis sociais que se perpetuam por gerações. No período escravagista, o termo “mucama” organizou a vida de inúmeras mulheres negras, destinadas ao serviço contínuo da casa-grande, ao cuidado da família branca, à produção dos alimentos e às funções que sustentavam o cotidiano dos engenhos. A abolição inacabada apenas deslocou esse lugar para os centros urbanos, onde senzalas se converteram em quartos de empregada e o trabalho doméstico se institucionalizou como herança de desigualdades ainda vivas.
Esse imaginário social consolidou a ideia de que a mulher negra nasceu para servir e cuidar, como se fosse destino — e não imposição. Trata-se de um raciocínio que restringe horizontes e naturaliza a violência, mantendo corpos negros em posições subalternizadas. A herança escravagista impregnada no sistema alimentar encontra no racismo estrutural sua fonte de sobrevivência. Dos campos de monocultura emerge o racismo fundiário. Do desequilíbrio agroecológico, nasce o racismo ambiental. Da falta de acesso a alimentos de qualidade e em quantidade adequada, o racismo alimentar. O alimento, nesse cenário, é marcador de desigualdade e espelho das tensões que o país insiste em não resolver.
Das mesas à chefia dos grandes restaurantes, questões raciais atravessam os pratos e encontram corpos negros. A hierarquia das cozinhas profissionais repete dinâmicas históricas: mulheres negras acumulam técnica e experiência, mas raramente ocupam cargos de criação ou direção. O trabalho pesado da cozinha é associado a elas, enquanto o prestígio e a assinatura são reservados aos nomes que reforçam o estereótipo dominante. O resultado é a perpetuação de um sistema que impede o reconhecimento pleno de quem, de fato, sustenta a base do setor gastronômico.
A cozinha antirracista surge como possibilidade concreta de tensionar esses processos e abrir caminhos de interpretação e ação. Ela articula pilares fundamentais — raça, classe e gênero — para analisar a formação da cozinha brasileira e revelar camadas apagadas ou distorcidas. Examina a culinária como síntese de relações de poder, como campo de disputa simbólica e como espaço de memória coletiva. É nesse cruzamento que se torna possível compreender por que certos sabores ganham prestígio enquanto outros permanecem invisibilizados.
A coluna Cozinha Antirracista nasce no dia 20 de novembro, em parceria com a Xepa Ativismo, como desdobramento de um projeto que venho desenhando desde 2023 e que finalmente encontra espaço público para uma conversa contínua. A proposta é ampliar o debate sobre o sistema alimentar, iluminar autorias negligenciadas, revisitar narrativas históricas e aproximar a gastronomia das urgências sociais que atravessam o país. E, diante dessa trajetória, fica a pergunta que orienta este início: se a comida revela aquilo que tentamos esconder, estamos prontos para encarar a realidade?