Por Bárbara Bastos – professora da UFPE, conselheira do Consea Recife-PE e uma das fundadoras da União Vegana de Ativismo

O veganismo popular é uma vertente do movimento vegano que surgiu no Brasil em 2018, a partir da articulação da União Vegana de Ativismo – UVA, como uma reação à investida de grandes indústrias alimentícias no mercado de produtos plant-based (à base de plantas). Até então, os produtos industrializados que atendiam ao público vegano, como as versões vegetais de leites, queijos, iogurtes, salsichas e presuntos eram quase todos fabricados por empresas brasileiras, em sua maioria de abrangência local. Quando corporações como Unilever, Nestlé e Seara começaram a lançar seus produtos plant-based, o movimento vegano se dividiu entre os que comemoraram, entendendo como uma maior facilidade para aderir e praticar o veganismo, e aqueles que entendiam que essas empresas deveriam ser boicotadas e não aplaudidas, ao entender isso como uma cooptação do movimento. Essa situação deixou evidente que as pessoas que defendem o fim da exploração de animais não humanos podem ter visões muito diferentes de quais caminhos podem nos levar a essa mudança e também sobre que outros aspectos do mundo precisam ser transformados.

A defesa do boicote a essas empresas parte de uma visão de que o veganismo deve defender um projeto de sociedade que não apenas deixe de explorar animais não-humanos, mas também enfrente outros problemas sociais e ambientais. Se para alguém se tornar vegano for necessário depender de produtos industrializados ultraprocessados¹, mais caros que os equivalentes de origem animal, o veganismo estaria promovendo um modo de vida com mais dependência da indústria alimentícia, do sistema alimentar agroindustrial e inacessível para a maioria da população. Embora o uso de insumos vegetais possa reduzir impactos ambientais e para a saúde em relação aos de origem animal, o sistema alimentar que produz ultraprocessados aumenta uma série de outros impactos, ambientais, sociais e para a saúde de quem os consome. O que o veganismo popular defende é uma ampliação do conhecimento e acesso a uma alimentação que ao invés de carnes, laticínios e ovos, utiliza combinações de alimentos vegetais que sejam acessíveis e não incluam ultraprocessados.

A segunda edição do Guia alimentar para a população brasileira, que completou 10 anos em 2024, trouxe os ultraprocessados para o centro da discussão, como mostra a sua regra de ouro: “prefira sempre alimentos in natura ou minimamente processados e preparações culinárias a alimentos ultraprocessados”. O guia adotou a classificação Nova, desenvolvida por pesquisadores do Grupo de pesquisa Nupens, da USP, que divide os alimentos com base no seu nível de processamento antes de ser consumido ou adquirido, em quatro grupos:

  1. alimentos in natura ou minimamente processados;
  2. óleos, gorduras, sal e açúcar;
  3. alimentos processados; a
  4. alimentos ultraprocessados.

A classificação Nova considera que o grau e o objetivo do processamento dos alimentos influenciam não só o seu valor nutricional, mas também outros aspectos que podem afetar o risco de obesidade e diversas doenças associadas à alimentação. A orientação que o guia traz é de evitar os ultraprocessados e basear a alimentação em alimentos do primeiro grupo, utilizando com critério do segundo e terceiro grupos para produzir preparações culinárias. Nas últimas décadas diversos estudos científicos têm trazido um corpo de evidências cada vez mais robusto de como essa classificação é relevante para a relação entre alimentação e saúde e de como constitui uma diretriz adequada para orientar políticas públicas de saúde coletiva. O aumento no consumo de ultraprocessados tem sido cada vez mais relacionado ao aumento da incidência de diversas doenças e problemas de saúde, como obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares².

Uma alimentação vegetariana, sem o consumo de itens de origem animal, pode seguir as diretrizes do Guia alimentar sem grandes dificuldades. O guia menciona a viabilidade nutricional desse tipo de alimentação e inclusive traz alguns exemplos de refeições totalmente vegetais, mas diz que orientações específicas sobre a alimentação de vegetarianos não são tratadas no guia, e que as recomendações quanto a basear a alimentação em alimentos in natura ou minimamente processados e a evitar alimentos ultraprocessados se aplicam a todos, incluindo os vegetarianos. 

A única refeição para a qual o guia não apresenta exemplos totalmente vegetais é o café da manhã, em que todos os exemplos incluem laticínios, alguns minimamente processados e outros processados. Existem diversas alternativas vegetais adequadas que poderiam ter sido incluídas, como pastas ou outras preparações à base de amendoim, feijões ou sementes, que seriam interessantes também para reduzir o consumo de processados ao substituir por alimentos in natura ou minimamente processados.

Quando menciona o grupo dos feijões, o guia destaca como é uma importante fonte de proteína, e na seção sobre cereais, afirma que a combinação de leguminosa + cereal constitui uma fonte de proteína de excelente qualidade. Quando o guia apresenta exemplos de refeições, é citado o objetivo de ilustrar opções de alimentos para substituir carnes vermelhas, e nessa parte são apresentadas como alternativas carnes de outros animais, ovos ou legumes. É necessário apontar que não é uma boa ideia relacionar legumes como substitutos de carnes, pois possuem um perfil nutricional totalmente diferente. A combinação de arroz com feijão (ou de outro cereal com outra leguminosa) é que substitui as carnes, e deveriam ser destacados nos exemplos de refeições sem carnes. Na verdade, o guia falha em não mencionar que a carne, do ponto de vista nutricional, é redundante em uma refeição que inclui porções de leguminosa e cereal.

Um dos princípios do guia é que uma alimentação adequada e saudável deriva de um sistema alimentar socialmente e ambientalmente sustentável, destacando a relação da alimentação com aspectos mais amplos e fundamentais do contexto atual. Quando apresenta as razões para a recomendação de basear a alimentação em uma grande variedade de alimentos in natura ou minimamente processados e de origem predominantemente vegetal, o guia identifica os principais problemas sócio-ambientais da produção de animais: emissão de gases de efeito estufa, desmatamento, uso intenso de água, poluição do solo e corpos d’água e os problemas das monoculturas de produção de ração animal. A partir desses problemas, o guia aponta a importância de limitar o consumo de alimentos de origem animal, sugere a preferência por aqueles de produção orgânica ou agroecológica, mas não menciona a possibilidade de realizar refeições inteiramente sem os mesmos nem de seguir uma alimentação totalmente vegetal. Não é que houvesse uma expectativa do guia defender a adesão a uma alimentação vegetariana, mas que ele reconhecesse de maneira mais clara a viabilidade, as vantagens e orientasse quem quisesse aderir sobre como fazê-lo.

Podemos afirmar que o Guia alimentar reconhece a possibilidade da alimentação vegetariana, mas faltam alguns elementos para que ele forneça uma base adequada para o planejamento da mesma. Eu defendo que deva fazer parte das demandas do Veganismo Popular que o guia incorpore essas orientações, que seria um passo importante para que as diversas políticas públicas que se baseiam no guia também reconheçam e viabilizem a alimentação vegetariana, como nas merendas escolares, nos serviços de alimentação de garantia da segurança alimentar e nas orientações nutricionais nos serviços de saúde ligados ao SUS. Considerando os potenciais benefícios da redução do consumo de alimentos de origem animal, é necessário que essa redução seja amplamente incentivada, o que depende também de documentos norteadores de políticas públicas tais quais o guia alimentar.

Para os não veganos, é importante saber que o veganismo tem produzido uma grande quantidade de conhecimento sobre como produzir preparações culinárias nutricionalmente adequadas, práticas, acessíveis e saborosas sem a necessidade nem de ingredientes de origem animal nem de ultraprocessados. Esse conhecimento é útil não apenas para quem decide aderir a uma alimentação 100% vegetal, mas para que a sociedade como um todo possa cada vez depender menos da indústria alimentícia e da pecuária e se aproximar de uma alimentação mais sustentável³. E entender que o movimento vegano tem vertentes distintas, e que o veganismo popular é aliado da luta por sistemas alimentares sustentáveis e saudáveis e tem importantes discussões e ferramentas para apoiar essa luta.

Para os veganos, fica a mensagem de que para disseminar o veganismo de maneira acessível e popular, é necessário se alinhar ao guia alimentar, que traz diretrizes com embasamento científico e considerando a importância da alimentação promover de maneira conjunta a saúde das pessoas, a sustentabilidade do planeta e a justiça social. Defender o veganismo baseado em ultraprocessados plant-based é uma visão muito restrita do combate à exploração animal, pois ignora outras dimensões que são fundamentais também, e coloca o movimento vegano na contramão de importantes lutas da sociedade civil, pelo direito humano à alimentação adequada e saudável, pela soberania alimentar, pelo direito à terra. E pior: se alia à indústria alimentícia, que desde o lançamento do guia faz um grande lobby para tentar derrubá-lo. É por tudo isso que a mudança que o veganismo defende precisa vir das cozinhas, e não das indústrias.


  1.  Alimentos ultraprocessados são produtos comestíveis que combinam diferentes substâncias de uso exclusivamente industrial para obter um resultado palatável e altamente lucrativo para seus fabricantes e distribuidores. Alguns exemplos são refrigerantes, biscoitos, salsichas (de carnes ou de vegetais), margarina, leites vegetais e hambúrgueres vegetais.
  2.  No site do Nupens/USP é possível acessar diversos desses estudos: https://www.fsp.usp.br/nupens/category/publicacoes/
  3. Um recente estudo publicado em janeiro de 2024 sobre o impacto ambiental do consumo de carne bovina e alimentos ultraprocessados no Brasil identificou que os dois grupos de alimentos estão diretamente associados a maiores pegadas de carbono e hídrica. Os autores sugerem que a redução de consumo dos mesmos seria uma medida benéfica tanto para a saúde quanto para o meio ambiente. Acesso em https://doi.org/10.1017/S1368980023002975