Como é possível padecer num paraíso? O que seria isso? Sofrer, suportar, aguentar viver em um lugar aprazível, onde reina a felicidade? O ditado popular traduziu a maternidade como sendo: ser mãe é padecer no paraíso. Com isso, colocou a maternidade numa sacralidade, num contexto em que suportar o insuportável era compatível com o amor de mãe. Mas a realidade, o dia a dia, a maternidade real, vivida por mulheres reais, descortina um lugar muito diferente do paraíso. Um lugar construído para que nós, mulheres, permanecêssemos, certas de que ali cumprimos uma tarefa hercúlea e sem remuneração ou reconhecimento.

Se, por muitos anos, o trabalho de cuidado doméstico não havia ganhado a centralidade do debate nacional, hoje é impossível escamoteá-lo, em especial durante a celebração da data comercial em torno do dia das mães. Câmaras de Dirigentes Lojistas apostam na data como uma das mais importantes do comércio e da prestação de serviços em todo o país.

Não sou mãe, mas, como mulher preta, periférica, que venho de uma família numerosa em que vivo cercada de mulheres, igualmente pretas e periféricas, ouso dizer que não queremos presentes. Queremos e precisamos avançar na discussão e na construção de políticas públicas que reconheçam o cuidado doméstico como ocupação, labor, passível de proteção e garantia previdenciária e o devemos construir o quanto antes, porque é tarde. O trabalho do cuidado também faz ecoar as nossas desigualdades sociais. Ele pesa mais para as mulheres pretas, porque são elas a base dos serviços de cuidados para as famílias brancas e com recursos financeiros, são as mulheres pretas que garantem às mulheres brancas permanecerem no mercado de trabalho após a chegada dos filhos.

Mãe não é tudo igual. Nem a maternidade é igual para todas as mulheres. A psicanalista Vera Iaconelli, mestre e doutora pela Universidade de São Paulo, aponta que temos um Padrão Ouro que é a maternidade branca, de classe média alta, de mulheres casadas, cisgênero, heterossexuais, cercada por babás, que gestaram e pariram e terceirizam os cuidados dos filhos a outras mulheres, normalmente pretas, pobres, assalariadas e sobrecarregadas. O padrão real são mulheres com jornada de trabalho que ultrapassam 25 horas semanais de trabalho do cuidado, fora o emprego formal, que nem sempre têm aonde ou com quem deixar os próprios filhos para cuidar dos filhos dessas mulheres. Essas mulheres, pretas, pobres, são como a Mirtes, mãe do Miguel, o garotinho que acompanhava a sua mãe na casa dos patrões em plena pandemia e, por negligência da patroa, caiu do 12º andar de um prédio classe média alta no Recife.

A maternidade entra em colapso segundo a psicanalista. Surgem perguntas: Quem cuida de quem cuida? E o que acontece se o trabalho do cuidado não mais existir? Não resistimos enquanto sociedade, simples assim.

Mulheres pretas e pobres ensinam cotidianamente seus filhos a sobreviver. À fome, à ausência de pai e do estado, à falta de oportunidade, à violência. Mulheres, mães, ensinam seus filhos a romperem padrões, a dizer “basta”.

Nós, mulheres, mães ou não, avançamos na luta por direitos como a remuneração financeira para o trabalho do cuidado, a redução da jornada de trabalho, ampliação das vagas em creches; pela licença-paternidade pelo mesmo tempo que dura a licença das mães com a chegada dos filhos, nos moldes que alguns países da Europa já o praticam, assim como a possibilidade de flexibilidade da jornada de trabalho para os casos de mães-solos, mães atípicas, entre outras.

Este ano o Brasil se prepara para lançar a Política Nacional do Cuidado. É, sem dúvida, o passo mais audacioso que damos no sentido de promover as mudanças necessárias na divisão do trabalho, de modo que se torne mais igualitária entre homens e mulheres. A Política Nacional do Cuidado terá especial atenção aos recortes de gênero, raça e etnia, exatamente porque busca vencer as nossas maiores e seculares desigualdades.

Nenhuma mãe sonha sofrer no paraíso. Mães reais lutam para viver dignamente num país justo, solidário e comprometido com elas e suas crias!