Poké’exa ûti: o difícil caminho da luta pelo território
Pronunciando essas palavras é que, nos últimos anos, as lideranças Terena têm retomado territórios tradicionais e resistido no difícil caminho da luta por seus direitos.
O estado de Mato Grosso do Sul concentra atualmente a segunda maior população indígena no Brasil, destacando-se os seguintes povos: Terena, Guarani Nhandeva, Guarani Kaiowá, Kadiwéu, Kinikinau, Guató, Atikum, Kamba e Ofaié. Atualmente, as comunidades indígenas sofrem com problemas sociais de várias ordens, que incluem a educação, desassistência a saúde, violência e desnutrição. Toda essa problemática está intimamente ligada à questão territorial, resultado de processos de perda da terra que se deram de maneira diferente com relação a cada povo.
Nos últimos seis anos, o povo Terena, organizado por meio do Conselho do Povo Terena, constituído por caciques e líderes de retomadas, tem feito o enfrentamento na luta pelos seus direitos, especialmente no que diz respeito ao reconhecimento formal dos territórios tradicionalmente ocupados. Através da realização da Hanaiti Ho’únevo Têrenoe (Grande Assembleia Terena), as lideranças têm discutido e tomado decisões importantes sobre o território, saúde, educação, sustentabilidade e política de representação nas instâncias institucionais.
A 1ª Assembleia Terena foi realizada em 2012 na Aldeia Imbirussú, na TI Taunay/Ipegue, e contou com a participação de caciques terena, lideranças do povo Kinikinau e Kadiwéu. O documento final pontua que foi a primeira vez, desde a guerra do Paraguai que os povos indígenas do Pantanal se reuniram novamente. Após a primeira grande assembleia, outras grandes reuniões foram realizadas entre 2014 e 2016: a 2ª Assembleia Terena – Aldeia Moreira, na TI Pilad Rebuá, em novembro de 2012; 3ª Assembleia Terena – Acampamento Terra Vida, na TI Buriti, em maio de 2013; 4ª Assembleia Terena – Aldeia Brejão, na TI Nioaque, em novembro de 2013; 5ª Assembleia Terena – Aldeia Babaçu, na TI Cachoeirinha, em maio de 2014; 6ª Assembleia Terena – Aldeia Lalima, na TI Lalima, em novembro de 2014; 7ª Assembleia Terena – Aldeia Cachoeirinha, na TI Cachoeirinha, em maio de 2015; e a 8ª Assembleia Terena – Aldeia Água Branca, na TI Nioaque, em março de 2016; 9¬ª Assembleia Terena – Aldeia Bananal, na TI Taunay-Ipegue, em novembro de 2016; 10ª Assembleia Terena – Aldeia Buriti, na TI Buriti, em maio de 2017; 11ª Assembleia Terena – Aldeia Água Branca, na TI Taunay-Ipegue, em novembro de 2017.
A categoria “terra tradicionalmente ocupada” foi reconhecida pelo texto constitucional de 1988 e vem sendo objeto de luta dos povos indígenas de Mato Grosso do Sul, especialmente pelos Terena, Guarani, Kaiowá e Kadiwéu.
Mesmo a Constituição de 1988 reconhecendo o direito originário dos povos indígenas aos seus territórios tradicionais e impondo prazo de cinco anos para a demarcação e homologação de todas as TIs, ainda hoje várias comunidades estão fora de seus territórios tradicionais aguardando o reconhecimento jurídico-formal de sua terra.
A conduta territorial que antes usurpava, invadia e despejava comunidades inteiras de seus territórios tradicionais, hoje se traduz numa “conduta política”, sistematizada no conjunto de articulações estatais imbricadas em todas as instâncias de poder da máquina estatal, com o nítido objetivo de impedir o reconhecimento dessas terras tradicionais. Os dispositivos constitucionais que reconhecem essa diversidade de territorialidades – Estado pluriétnico –, um processo de ruptura e de conquista, não resultaram em nenhuma adoção de política étnica e nem de ações governamentais capazes de reconhecer efetivamente esses territórios.
Nessa luta pelo território, diferentes estratégias permeiam o interior das comunidades, como as retomadas e questões externas, como ações governamentais. Fica nítida, por meio delas, a distinção entre as formas de territorialidade estatais, baseadas no reconhecimento formal, e as formas de territorialidade indígena, como as retomadas e autodemarcações. Na territorialidade estatal, que tem por objetivo reconhecer formalmente determinado território a um determinado povo indígena, é preciso entender como o Estado brasileiro regula e reconhece esses territórios.
Na década de 1980, pesquisadores ligados ao “Projeto de Estudos sobre Terras Indígenas no Brasil: invasões, uso de solo e recursos naturais (PETI)”, desenvolvido no Museu Nacional, procuraram debruçar-se sobre os modos como o Estado brasileiro formulava e definia as Terras Indígenas. É justamente neste plano que se abre a possibilidade de refletir, na tentativa de compreender como a “conduta política” atual não tem contemplado os povos indígenas e, consequentemente, os seus territórios tradicionais.
Atualmente, o povo Terena está distribuído nas seguintes TI Taunay-Ipegue, Limão Verde, Cachoeirinha, Pilad Rebuá, Lalima, Buriti, Nioaque, Buritizinho e nas aldeias urbanas localizadas em Campo Grande. Tais terras são reservas indígenas demarcadas na época do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), à exceção da TI Limão Verde, demarcada de acordo com o preceito constitucional de 1988. Posto isto, tem-se como principais entraves à demarcação dos territórios indígenas a judicialização das demarcações e o modelo de “desenvolvimento” adotado pelo Estado brasileiro, opção que não contempla as comunidades, ainda vistas como empecilhos ao dito “desenvolvimento”.
No que tange à judicialização, são latentes as inúmeras ações judiciais em trâmite perante a Justiça Federal de Mato Grosso do Sul, bem como os recursos interpostos perante o Tribunal Regional Federal da 3ª Região, a segunda instância de jurisdição. Como se sabe, o procedimento de demarcação de TI está previsto para tramitar na via administrativa, iniciando-se na Funai e sendo concluindo com expediente da presidência da República (atos do poder Executivo).
No entanto, com as ações intentadas pelos interessados na não demarcação, os procedimentos ficam paralisados por força de decisão judicial, baseadas apenas em argumentos jurídicos de cunho civilista (Código Civil), enquanto o direito dos povos indígenas foi tratado com profundidade pelo direito constitucional (Constituição Federal). O levantamento das ações judiciais demonstra justamente essa tendência do judiciário federal de Mato Grosso do Sul.
Em levantamento feito em 2015, constatou-se que na Justiça Federal de Mato Grosso do Sul estavam em trâmite aproximadamente 388 processos judiciais que versavam sobre demarcação de TI e demais conflitos possessórios. Desse total, 154 processos tramitavam na subseção judiciária de Campo Grande; 73 processos em Dourados; 93 em Ponta Porã; e 68 em Naviraí. Estas são apenas ações tramitando em primeira instância, sem contar outras centenas de recursos pendentes nos tribunais de segunda instância.
No Supremo Tribunal Federal (STF) localizamos 13 ações judiciais envolvendo demarcação de TIs. Há casos em que o Estado de Mato Grosso do Sul ingressa como parte no processo, atuando como assistente litisconsorcial do fazendeiro; o que faz a ação ser deslocada da Vara Federal de primeira instância para o STF.
Esta sistêmica ação por parte do Estado (leia-se: governador) tem o nítido objetivo de levar o processo para o STF e, consequentemente, aumentar a demora por uma decisão do poder Judiciário. Como a judicialização tem sido um dos principais entraves às demarcações, são várias as manobras processuais para o retardamento da prestação jurisdicional, entre eles, o ingresso do Estado como parte nos processos.
Diante da inércia do poder público em cumprir a determinação constitucional de demarcar as TIs, o Conselho do Povo Terena, por meio de seus caciques e lideranças, deliberou a imediata retomada de seus territórios. Nesta esteira, nos últimos quatro anos os Terena reocuparam aproximadamente 45 mil hectares de terras, constituindo inúmeros acampamentos indígenas. No município de Dois Irmãos do Buriti, temos as retomadas 10 de maio, Pahô Sîni, Terra Vida e Cambará. No município de Miranda estão as retomadas Maraoxapá, Mãe Terra, Charqueada e Kuixóxono Utî. Em Aquidauana estão as retomadas Esperança, Maria do Carmo, Cristalina, Ouro Preto, Persistência, Capão da Arara, Ipanema, Touro e Santa Fé.
É justamente neste contexto de conflito fundiário que Oziel Gabriel, liderança terena, foi morto na manhã do dia 30 de maio de 2013, depois de ser gravemente ferido por projétil de arma de fogo em uma área retomada pelo povo Terenapertencente à TI Buriti, declarada em 2010 como de ocupação tradicional. O episódio se deu quando a Polícia Federal, usando de um violento modus operandi desproporcional, em uma ação mal planejada, iniciou a execução da reintegração de posse da área ocupada pela comunidade, que vem sendo reivindicada pelo ex-deputado estadual Ricardo Bacha, com bombas de feito moral, spray de pimenta e tiros de armas letal e não letal. Em 2016, as investigações do Ministério Público Federal (MPF) concluíram que o projétil que atingiu Oziel partiu de uma arma da Polícia Federal.
Ainda em 2013, o líder Paulino Terena foi atacado em sua comunidade por quatro homens encapuzados. O atentado foi atribuído a produtores rurais da região, em disputa na Justiça pela posse de territórios reivindicados pelos Terena. Importante lembrar que foi nesta mesma região que, em 4 de junho de 2011, um ônibus que transportava cerca de 30 estudantes terena, a maioria entre 15 e 17 anos, foi atacado com pedras e coquetéis molotov. Seis pessoas, incluindo o motorista, sofreram queimaduras e quatro foram internadas em estado grave. A estudante Lurdesvoni Pires, de 28 anos, faleceu, vítima de ferimentos causados pelas queimaduras. O ataque está intimamente ligado ao contexto da disputa pela demarcação de TIs.
O contexto de Mato Grosso do Sul é extremo ao ponto de a violência do campo se institucionalizar nas agências estatais e setores de representação do agronegócio. A violência é, ao mesmo tempo, velada e declarada. Foi assim que no final de 2013, a Associação dos Criadores de Mato Grosso do Sul (Acrissul) e a Federação da Agricultura e Pecuária de Mato Grosso do Sul (Famasul), com o apoio da bancada ruralista do Congresso Nacional, lançaram a convocação da realização do chamado “Leilão da Resistência”, grande ato político que tinha como fim maior a arrecadação de fundos para a formação de uma grande milícia armada para fazer a segurança de propriedades rurais e promover ataques a comunidades indígenas.
O Conselho Terena e a Aty Guasu, Grande Assembleia dos povos Kaiowá e Guarani, ingressaram com ação judicial para barrar o “Leilão da Resistência”. O processo foi distribuído à 2ª Vara Federal de Campo Grande, e no dia 4 de dezembro de 2013, a juíza Janete Lima Miguel determinou que as entidades ruralistas se abstivessem de realizar o leilão argumentando que “esse comportamento por parte da parte [fazendeiros] não pode ser considerado lícito, visto que pretendem substituir o Estado na solução do conflito existente entre a classe ruralista e os povos indígenas” e que “tem o poder de incentivar a violência (…) e colide com os princípios constitucionais do direito à vida, à segurança e à integridade física”.
Numa manobra processual, em menos de 48 horas depois, as entidades ruralistas conseguiram afastar a magistrada do caso e, após o tribunal nomear outro magistrado, o leilão foi liberado pelo juiz Pedro Pereira dos Santos. A decisão, no entanto, impôs condicionantes: 1) O dinheiro arrecadado com o leilão deveria ser depositado numa conta judicial e controlado pela Justiça; 2) Os leiloeiros deveriam discriminar os nomes dos arrematadores e os valores pagos; 3) A utilização dos recursos arrecadados com o leilão só poderá ser feita depois da Justiça ouvir o Ministério Público Federal (MPF) e as organizações indígenas Aty Guasu e Conselho Terena.
É notório, de igual modo, o processo de criminalização de lideranças indígenas e aliados do movimento indígena em curso no Estado e no Brasil. Eu mesmo enfrentei, em menos de dois anos, processos disciplinares na Ordem dos Advogados do Brasil, seccional Mato Grosso do Sul (OAB/MS), um deles com pedido de cassação de meu registro como advogado, assinado pela Comissão do Agronegócio da entidade.
A perseguição aumentou depois que atuei na ação judicial que suspendeu a realização do chamado “Leilão da Resistência”, criando obstáculos intangíveis aos realizadores do evento. Em março de 2014, os ruralistas também manejaram uma ação judicial para tentar impedir que eu defendesse minha dissertação de mestrado dentro da terra indígenaTIs, justamente porque tratava do direito territorial dos povos indígenas.
Nesta esteira, em 2015 foi instalada pela Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Proposta pela deputada ruralista Mara Caseiro, esta CPI foi um verdadeiro instrumento de perseguição a indigenistas e lideranças indígenas do Estado. A Justiça Federal em Campo Grande, atendendo pedido da Defensoria Pública da União, concedeu liminar suspendendo a CPI, no entanto, o Estado de Mato Grosso do Sul ingressou na demanda e recorreu ao Tribunal Regional Federal da 3º Região, que suspendeu a liminar possibilitando que a CPI prosseguisse com os trabalhos. Importante registrar que o Conselho do Povo Terena foi a organização indígena mais perseguida por esta CPI.
A luta do povo Terena é incansável. No final de 2015 foram surpreendidos pela decisão da Segunda Turma do STF que anulou a demarcação da única Terra Indígena terena demarcada após 1988, a TI Limão Verde, localizada em Aquidauana. A demarcação da TI Buriti também foi anulada pelo TRF da 3º Região e inúmeras decisões liminares têm sido prolatadas em ações de reintegração de posse contra comunidades indígenas.
Entra em cena a discussão do chamado “marco temporal” suscitado pela primeira vez no STF no julgamento do caso da Raposa Serra do Sol. A tese defendida por parte da Segunda Turma do STF é a de que o direito dos povos indígenas à posse de seus territórios tradicionais teria como condição a presença das comunidades nas terras que reivindicam na data de promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988.
Outra possibilidade seria a comprovação do esbulho renitente, ou seja, a resistência das comunidades indígenas à invasão de seus territórios por meio do conflito físico ou reivindicando a posse na Justiça. Cabe salientar que os povos indígenas, o MPF e a Funai refutam esta tese inconstitucional, pois não é possível a sua aplicação no contexto de intensas violações que os povos indígenas foram alvo nesses mais de 516 anos.
Fica evidente que as decisões do poder Judiciário baseadas no marco temporal são equivocadas, já que a atual Constituição não limita os direitos originários dos povos indígenas a 5 de outubro de 1988, pelo contrário: impõe prazo para que o Estado brasileiro conclua a demarcação desses territórios. Cabe registrar que Terra Indígena e posse nativa são conceitos mais amplos que permanência física em certo espaço territorial. Na perspectiva de terra tradicionalmente ocupada por esse ou aquele povo indígena, vale dizer, prevalece toda a área necessária à reprodução física e cultural do povo.
O povo Terena tem demonstrado forte resistência em sua história imbricada às ações estatais de que foram alvo, entretanto, seguem firmes, fortalecendo-se enquanto povo indígena e gritando a palavra de ordem “Poké’exa ûti!”,“nosso território tradicional (nossa terra)”. Pronunciando essas palavras é que, nos últimos anos, as lideranças terena têm retomado territórios tradicionais e resistido no difícil caminho da luta por seus direitos.