Após vários testes realizados no Midjourney, testes que devem ser realizados em inglês, já que a ferramenta não reconhece outro idioma (alguém dirá, não tem inteligência suficiente para isso), o resultado do comando “imagine beauty woman” (imagina uma mulher bonita) são quatro opções de mulheres ocidentais magras e brancas de cabelo liso.

Para quem não saiba, o Midjourney é uma ferramenta de inteligência artificial que pode ser usada pelo Discord para produzir imagens a partir de descrições textuais. “Imagine” (imagina) é seu principal comando. Você escreve /imagine e logo disso você pede ao robot alguma coisa que queira que ele imagine e entregue a você em formato de imagem digital. O robot sempre entrega quatro opções de imagem (com o propósito de ser plural, democrático e inclusivo). Então o comando se completaria assim: /imagine beauty woman. Neste caso o robot imaginou quatro mulheres brancas, magras, ocidentais, de cabelo liso. O robot é racista? Possivelmente, e quem o programa tem muito a aprender sobre racismo e beleza.

Resultado do primeiro teste “imagine beauty woman” no Midjourney.

No caso do homem, ou da visão masculina que o robot tem de beleza, o resultado não foi diferente. “Imagine cute man” deu como consequência quatro opções de homens brancos, magros, ocidentais, de cabelo liso.

Resultado do teste “imagine cute man” no Midjourney

O Midjourney é apresentado, junto a outras de igual indole, como uma ferramenta revolucionária capaz de mudar as regras de produção de imagem no mercado. É realmente assustador ver a passividade com que as pessoas estão aceitando essas máquinas que reforçam estereótipos racistas, etaristas, capacitistas, gordofóbicos e tudo o que poderia ser de pior na hora de produzir conteúdo simbólico a partir de imagens.

As consequências negativas de permitir que essas ferramentas continuem atuando dessa forma e continuem a ser consideradas “ferramentas profissionais de produção de imagens” são demasiado grandes.

Beleza?

A beleza humana é aquela que se atribui, desde a antiguidade, ao corpo humano, tanto masculino como feminino. Na Grécia Antiga, por exemplo, o corpo humano estava sujeito a conceitos ideais (areté) que eram atribuídos sobretudo a deuses e heróis trágicos e suas representações escultóricas.

Em tempos posteriores, a beleza tendeu a se concentrar no corpo feminino, e toda uma indústria de beleza foi construída cujo objetivo é fornecer às mulheres os instrumentos cosméticos para “embelezar-se”, de acordo com padrões como aqueles que inspiram os concursos de beleza femininos como Miss Universo.

Segundo teste /Imagine beautiful woman, no Midjourney.

No entanto, a beleza humana não difere de outros tipos de beleza, nem está sujeita a menos subjetividades e variações históricas. Por exemplo, o corpo feminino mais gracioso pelos padrões medievais europeus era o da mulher rechonchuda, um emblema de saúde e bem-estar material em uma época de fome e miséria generalizada.

Enquanto nos tempos industriais, em que esses fatores não afetam tanto a cultura, espera-se nas mesmas geografias que a mulher bonita seja esbelta e voluptuosa. Cada cânone de beleza humana responde, então, a uma época e cultura específicas.

Neste caso, o teste foi /imagine perfect woman (imagina uma mulher perfeita) e o resultado foi mulheres mais loiras que as anteriores.

Existem padrões construídos em torno do que é ser bonito e atraente e as pessoas são julgadas de acordo com o quão bem elas atendem a esse padrão. Esses julgamentos podem influenciar os processos de seleção de empregos, com quem as pessoas escolhem ser amigos e como alguém é tratado por estranhos.

No entanto, essas normas são frequentemente medidas por metas eurocêntricas, com narrativas de beleza branca e ideais de beleza sendo fortemente racializados. Esses padrões também exaltam valores como ser magro, atletico, jovem, de pele, cabelo e olhos claros. São inquestionavelmente consequência do processo de colonização que instaurou a visão de beleza europeia como um valor universal.

Em este caso o teste foi /Imagine perfect man, o resultado? Uma visão ariana da perfeição masculina.

Traços desejados, como tamanho específico dos olhos, volume dos lábios e largura do nariz, são baseados em padrões anglicizados.

A branquitude é simultaneamente reforçada como norma, enquanto a “alteridade” se torna fetichizada e “exótica”.

“Eu gostaria de ter o seu tom de pele! O cabelo dele é tão grosso, posso tocá-lo? O que você é? Você é negra, mestiça?” São frases que você ouve comumente utilizadas como “elogios” quando na real são formas de apreciar o “exotico” ou que sai da norma, por tanto, expressões racistas.

Teste /imagine perfect baby. Mais uma vez, branquitude (e olhos azuis) como metáfora da perfeição.

Nossas normas de beleza socialmente aceitas que idealizam a magreza, a juventude e a brancura convergem com a exotização das pessoas negras, dos indigénas, de pessoas gordas, não tão altas e por aí vai.

A indústria da beleza, fitness e saúde converge com o classismo e o racismo de maneiras que destacam certos corpos como “preguiçosos”, “desleixados” e “não profissionais”.

O que consideramos tamanhos corporais “normais” são, na verdade, idealizações magras.

O modelo de beleza hegemônico, ou dominante, foi imposto pela cultura ocidental e atualmente faz alusão ao corpo saudável, magro, jovem e sobretudo branco. Essa estética hegemônica tem sido veiculada principalmente pela mídia ocidental, que assim consegue uma padronização dos cânones de beleza.

É preciso traçar um horizonte onde essas ferramentas estejam ao serviço de um verdadeiro processo de democratização e não ao serviço da aceleração da produção para beneficiar setores corporativos concentrados. As IA não são mais que algoritmos cada vez mais complexos que se valem de dados que seres humanos fornecem para realizar cálculos. No caso dessas ferramentas de produção de imagens, é inaceitável que reproduzam cânones de beleza baseados numa visão eurocêntrica, e por consequência, racista, gordofóbica, capacistista e, em resumo, discriminadora.

Belo é tudo aquilo que está em harmonia com sua própria origem natural. O ser humano, em si mesmo, com todas suas variações, é belo, bela, bele. Feio é tudo aquilo que é forçado, imposto. Tudo aquilo que contribui com a desigualdade, a discriminação e a miséria, é feio e repudiável.