Pagar para plantar: o agronegócio atua com o governo pelo fim da agricultura familiar
Projeto de Lei quer incluir mais sementes no “direito de propriedade” das agroindústrias, retirando mais ainda a liberdade de agricultoras e agricultores.
A agricultura foi desenvolvida pelas mulheres há cerca de 13 mil anos, as agricultoras e os agricultores plantam as suas sementes, colhem e plantam novamente todos os anos, durante todo esse período da história humana. A liberdade de conservar, utilizar (plantar, colher, armazenar, reproduzir, ceder, beneficiar, trocar e vender) suas sementes é uma prática cultural e comum aos agricultores há muitos séculos. E é também, um direito assegurado no artigo 9º do Tratado Internacional sobre Recursos Fitogenéticos para Alimentação e Agricultura – TIRFAA, ao qual o Brasil é signatário, tendo sido promulgado pelo Decreto nº 6.476 de 05 de julho de 2008.
A Soberania Alimentar e Genética em risco
O Projeto de lei nº 826/2015 colocará em risco a soberania alimentar e genética dos agricultores. Na prática, é inegável que causa impactos negativos não apenas sobre o livre uso da biodiversidade pelos agricultores, mas também sobre o custo de produção afetando a renda do agricultor e o aumento dos preços ao consumidor. Isso cria portanto, restrições de acesso à diversidade de alimentos, que são indispensáveis a uma melhor qualidade de vida.
Quanto a conservação das variedades tradicionais, a Constituição Federal (Artigo, 225, II) ressalva que o meio ambiente é bem de uso comum e essencial à qualidade de vida, sendo dever do Poder Público e da coletividade cuidar, proteger, preservar e garantir a diversidade e a integridade do patrimônio genético.
Leis que promove a destruição da biodiversidade
Mas a partir da década de 90, e por pressão das grandes corporações internacionais do sistema agroalimentar industrial, foram criadas novas leis que deveriam garantir a preservação do patrimônio genético e a segurança alimentar. Mas que, ao contrário, promovem a destruição da biodiversidade e impedem que políticas públicas possam efetivamente promover e resguardar esse direito aos pequenos agricultores. Essas novas leis contribuem para a consolidação do monopólio das empresas sobre as sementes, como a lei de sementes e a lei de proteção de cultivares, esta em revisão no atual projeto de lei, conferindo propriedade intelectual sobre as sementes de variedades agrícolas industriais extendendo-a até a colheita dos produtos, quando a taxa de licença de uso (royalties de patente) não for paga na compra da semente.
Após a finalização dos acordos da Rodada Uruguai/GATT (acordo sobre tarifas da OMC), em 1997 entra na pauta política a discussão sobre a propriedade intelectual sobre cultivares agrícolas, sendo sancionada uma lei de proteção de cultivares (lei, nº 9.456 de 25 de abril de 1997), onde é estabelecida a concessão de Certificado de Proteção. Assim, a cultivar é considerada um “bem móvel para todos os efeitos legais”. Ou seja: a semente de uma planta agrícola “melhorada” ou “modificada” é considerada um bem móvel de propriedade de uma empresa e o agricultor para plantar, terá que sempre comprar novas sementes.
A aprovação do PL n. 827 de 2015 aumentará monopólio das empresas sobres sementes e mudas de plantas.
Como se não fosse muito, e visando aumentar o controle sobre o patrimônio genético vegetal, a bancada ruralista no Congresso Nacional, quer aprovar o PL No. 827 de 2015, um novo Projeto de Lei sobre Proteção de Cultivares (de autoria do deputado ruralista Dilceu Sperafico (PP-PR), que visa alterar a lei de 1997 e cujo o objetivo central em seu artigo 1º é “ampliar os direitos dos obtentores vegetais sobre o material de multiplicação da cultiva protegida”. Ou seja, trata-se, portanto, de aumentar o monopólio das empresas sobre as sementes e mudas das plantas e não apenas restringir ainda mais os direitos dos agricultores, mas negar que os agricultores possuem direitos sobre as suas próprias sementes.
O projeto de lei em tramitação visa aumentar o controle das empresas sobre as sementes, especialmente aquelas sementes desenvolvidas como produto para o mercado, as chamadas “cultivares melhoradas” (ou, como no caso do milho e hortaliças: os híbridos”). Aumentar efetivamente o controle sobre a agrobiodiversidade. As práticas de conservação e uso próprio de sementes pelos agricultores, por meio do armazenamento em seu paiol, garrafas pet, ou mesmo na geladeira, para plantio na safra seguinte ou para a troca livre e comercialização fazem parte do modo de fazer agricultura dos camponeses.
Pelos parâmetros estabelecidos no projeto de lei, as novas variedades desenvolvidas em território nacional e assinaladas como “nova cultivar” serão cadastradas no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) pelos seus criadores, ou seja, pelas empresas sementeiras ou instituições de pesquisa para que este garanta a conferência dos direitos de propriedade intelectual sobre essas cultivares.
O poder dos pseudocientistas, ou como se denominam: os “obtentores”, se constrói como um jogo de apropriação privada da diversidade agrícola, ou seja: da agrobiodiversidade. Assim, pela via legal, a apropriação da agrobiodiversidade dos camponeses é a forma atual de expansão do agronegócio no campo. E para além disso, a transforma em mercadoria e extingue um direito de costume dos agricultores.
Dessa forma, condiciona toda a produção agrícola dos agricultores que utilizam sementes protegidas ao pagamento de royalties tantas vezes quanto for realizada a compra de sementes, ou quando faz a comercialização do seu produto colhido (grãos). Pela proposta do projeto haveria, ainda, uma percentagem destinada a um fundo de financiamento de pesquisa gerido e para as próprias empresas, ou seja: não há destinação de recursos para financiamento de pesquisa de interesse dos agricultores camponeses.
Produzir as sementes crioulas é um direito inalienável
Esse projeto de lei está lastreado pelos interesses das empresas transnacionais que controlam o mercado internacional da indústria de sementes, e afetará diretamente o direito à conservação das sementes crioulas cultivadas por gerações de agricultores ao longo da história, assim como das práticas tradicionais de manejo agrícola herdadas pelos agricultores e utilizadas nas comunidades; Quando há dependência externa de sementes, os agricultores acabam por perder sua herança cultural e a depender economicamente do setor privado para acessar sementes para o cultivo de alimentos. Não há autonomia, não há soberania sobre o que se cultiva e o que se consome como alimento.
A proposta em tramitação, se aprovada, até pode aumentar o número de cultivares protegidas pela lei, mas efetivamente vai reduzir o número de variedades que poderão ser cultivadas e comercializadas livremente pelos agricultores.
As sementes são e sempre foram um bem de uso comum dos agricultores, mas foram “roubadas” pelos governos nacionais, quando aceitaram o texto da Convenção da Diversidade Biológica-CDB e do Tratado da FAO (TIRFAA). Eles se comprometeram a preservar/conservar a biodiversidade e a agrobiodiversidade e não o fazem (por não terem condições necessárias ou por não quererem).
É fundamental dizer e repetir: as sementes pertencem aos agricultores, é um direito conquistado ao longo da história, inalienável. Portanto, as sementes já existiam, foram apenas modificadas para se adequar às máquinas e ao mercado – como mercadoria. Mas elas não são mercadoria. Elas são mais do que uma forma de se produzir alimentos, elas agregam um conhecimento desenvolvido milenarmente pelas agricultoras e agricultores. É preciso reconhecer – povo e governo, que os agricultores tem o direito de conservar, utilizar e produzir livremente as sementes.
Por Claudeilton Luiz – MPA/PE, Bacharelando em Direito e Marciano Silva- Engenheiro Agrônomo- MPA/Brasil