Os germens da Música Natureza
O segundo longa documental, “A Música Natureza de Léa Freire”, do músico, roteirista, diretor e desenhista de som Lucas Weglinski, prepara-se agora para seu lançamento comercial.
Por Lucas Weglinski
Germens, o mesmo que raízes, sementes, cicatrículas, embriões, esporos, fetos, germes. O que leva à concepção de um filme, que nada mais é do que uma floresta rica em variados elementos, fauna e flora diversas, ancoradas num solo vivo? Dificilmente um indivíduo, pois nem mesmo uma única árvore vinga só. Vinga aqui no sentido euclidiano, de vencer as intempéries da dura vida. Pois mesmo a solitária árvore vai depender de raízes coletivas, fungos, polinizadores, água, sol, ventos e muitos outros elementos.
Dito isso, um filme nunca é sobre uma pessoa, muito menos realizado só por uma pessoa, mesmo quando essa pessoa joga nas onze e faz roteiro, câmera, montagem, direção, desenho de som, produção. Até porque ninguém joga nas onze por escolha própria, pelo contrário, joga por falta de escolha. Mas nunca de fato sozinha, sempre por meio de um coletivo que realiza, assim, mesmo diante de um árido cenário onde a cultura ainda não é (re)conhecida como infraestrutura.
Voltando ao sobre, um filme sobre alguém, nunca se limita ao indivíduo, pois como lembramos não há árvore verdadeiramente solitária na Terra. Não há o um, e apenas o um, na natureza. Há micro e macrocosmos de uns e muitos que formam um organismo que pode até dar a falsa impressão de unidade. Que papo doido… É porque na cosmovisão indígena, nossa ancestralidade de Abya Yala, aprendemos que tudo está conectado ao todo. E isso se deve levar ao audiovisual, setor que muitas vezes acaba confundido sua verdadeira missão com o show de egos que desaguou no que chamamos redes sociais.
Cinema não é isso. Música Natureza não é isso. O filme sobre Léa Freire é também um filme sobre Alaíde Costa, Filó Machado, Manezinho da Flauta, Zimbo Trio, Originais do Samba, rua Augusta fervilhante, praça Roosevelt nascendo, clubes de jazz hoje extintos, a noite de São Paulo. Um filme que fala da Febem, hoje Fundação Casa; da opressão do Estado ou da família, do machismo, do preconceito, da fome em suas perversas muitas formas, da injusta pobreza em diversos estados, da dor da exclusão. Mas também um registro sobre as delícias das raízes culturais da rica terra brazyl, das amizades que nos curam e renascem, do empoderamento pela arte. “A Música Natureza de Léa Freire” é um filme sobre a revolução pela educação, pelo cuidado de si e o cuidado de enxergar o outro, o reconhecimento e também o desprendimento. O espelho do espelho, o que une e o que difere uma Silvia Góes de uma Joana Queiroz, o não pertencimento ao choro, ao samba, ao jazz, ao chamado erudito, o transbordar fronteiras. O sinfônico a partir de cores brasileiras, o nordeste reverberado em orquestras, a cor e o gênero de quem atua em orquestras, as escolas públicas de música, as crianças presas e as crianças soltas no mundão, donas de si. O timbre de uma tempestade tropical, o tempo do vento, a ardência de uma maré, tudo isso é Música Natureza, tudo isso é Léa Freire. Como cantavam os canudenses no momento da morte de Conselheiro: “Antônio você agora não é mais só você.”
Léa Freire também não é mais só ela. E ela sabe disso. Léa Freire é tanto a sua mãe com ouvido absoluto que sai tocando impossíveis partituras ditas clássicas só de vê-las, quanto é também o Zimbo Trio no malicioso balanço da brasilidade improvisada, suingada. Tudo isso, enquanto bebe no samba dos Originais, na africanidade ancestral que quebra a dureza colonial, na dor do canto negro de uma Alaíde, na perfeição de quem ela é, aquém e além do que a branquitude da sua triste época permite. A Música Natureza está nos acordes apaixonantes de um Filó Machado incorporado num indomável Deus Música, no transe dos dedos lavrados de um Manezinho da Flauta, apagado do pobre consenso de uma ideia de olimpo musical. Está num Quarteto de Cordas da cidade de São Paulo, fundado por Mário de Andrade, e na explosão pós-atômica de um Câmaranóva, que encerra os créditos. Na força viva da madura e certeira orquestra da universidade pública e no transbordante entusiasmo da jovem orquestra do Projeto Guri e suas mais de 300 escolas públicas de música que resistem pelo estado de São Paulo. Escolas essas sempre alvo da ganância dos governadores que não querem gastar “tanto dinheiro para isso”. “Isso” são nossas crianças, ovo do povo novo, tesouro maior, mas também num berro de uma criança pobre enjaulada numa prisão infantil desumanizada sob o horror que a sua classe social lhe impõe.
Na mesma floresta, este cenário surge em contraposição à liberdade de um improviso furioso num clube de jazz de uma noite ébria dos anos 1970, num Bixiga ou rua Augusta que foram também destruídos em resposta a essa audácia anti castas. Assim como foram destruídos os sonhos, a memória de um país, os rolos avinagrados de 16mm filmados pelo pai de Léa ou os de 35mm da TV Cultura, que generosamente guardam arranhadas lembranças do que esse país avançou e como maré recuou. Pois é Brasil Latino Sul Global. Tudo isso é Léa: Amazônia, sertão, praia, mega urbe poluída, engarrafamento, ruído branco e silenciamento. Mulher. Música.
Não existe certo ou errado, bonzinho ou malvado, existe a vida crua e as escolhas diárias de como atravessá-la e com quem, por quem e por que? Léa é um delicioso labirinto que nos leva a percorrer o que de nós mesmos ali enxergarmos e uma provocante faísca para lutar por tudo e todes que quisermos transformar. Seu som é único, assim como seu tom ao revelar o veneno remédio de que a música é medicina. Medicina no sentido indígena, um elixir que vai te alçar à mais fina luz e também te afogar na mais pura e densa sombra de um infinito jardim, onde tudo dança. Há dor, amor, humor. E onde um sujeito não termina em si, mas em muitas outras notas, especialmente naquelas que transmitem, multiplicam e exponenciam seus sóis. Pulmões de flautistas em contração ou expansão, ares em movimento constante. Elementos num balé furioso e belo como o Cosmos. Essa é a Música Natureza, de Léa e da imensa e diversa floresta a qual ela habita e atua em simbiose.
*Lucas Weglinski (@lucasweglinski) trabalha com cinema há 20 anos, com incursões nas artes visuais, videoarte, teatro e música. É roteirista, diretor, montador e desenhista de som. Em 2023, lançou nos cinemas o longa-metragem “Máquina do Desejo”, que permaneceu em cartaz nos cinemas do Brasil por mais de cinco meses, após percorrer dezenas de festivais e juntar inúmeros prêmios. O mesmo percurso vem sendo trilhado por seu segundo longa documental, “A Música Natureza de Léa Freire”, que agora prepara seu lançamento comercial. Lucas acaba de filmar seu primeiro longa de ficção “A Noite é uma Farsa”, do qual é roteirista, diretor, montador e desenhista de som. E também está montando seu terceiro longa documentário “Rei da Noite”, sobre Ricardo Amaral, cuja história é muito mais do que suas icônicas casas noturnas e La Dolce Vitta da alta sociedade do Rio, Paris e NY. Na vida deste rei da noite, como um desfile de escola de samba, descobrimos como nasceram os fogos de Copacabana; porque Caetano e Gil foram presos na sua boate Sucata; como golfinhos de Miami fugiram e repopularam a baía de Guanabara; porque foi inventado o Engov ou criados os camarotes de celebridades na Sapucaí e como personagens como Pelé, Danuza Leão, Príncipe Charles, Fellini, Luiza Brunet, Jaguar, Troisgros, Dzi Croquettes e a máfia de NY se cruzam neste Vaudeville.