Oceano quente
Toda a superfície da Terra está sujeita ao aquecimento global, mas ele, por si só, não explica um aumento tão abrupto da temperatura do Atlântico
Há sinais de que chega ao fim mais um ciclo do fenômeno El Niño, que decorre do aquecimento periódico das águas na região equatorial do Oceano Pacífico, próxima do litoral peruano. Já se detecta a presença de águas geladas e ele deve se converter, nos próximos meses, no fenômeno La Niña, o seu oposto, ou seja, o resfriamento da mesma região. São ocorrências já conhecidas pelos cientistas, assim como a sua influência sobre o clima da América do Sul e do mundo todo.
Desta vez, agravado pelo efeito estufa, o El Niño deixou um rastro de devastação inédito. Porto Alegre está inundada há trinta dias e outras cidades gaúchas terão que ser reconstruídas em outras áreas. O mesmo fenômeno climático provocou, em 2023, a estiagem mais aguda da história recente da Amazônia. Com a redução do volume de chuvas no verão, a mesma crise promete se repetir no próximo semestre. Com ela, virão as cenas já conhecidas de pessoas se deslocando por grandes distâncias para encontrar água potável e comida e outros insumos, barcos encalhados e cargas perdidas, lagoas fétidas, repletas de peixes mortos.
Um outro fator contribuiu para o ineditismo da última estiagem amazônica: o aquecimento, também, das águas do Atlântico Equatorial, entre o nordeste da América do Sul e o noroeste da África. Os cientistas achavam que seria um evento temporário, mas ele vem persistindo há mais de nove meses, como se não tivesse havido inverno.
Toda a superfície da Terra está sujeita ao aquecimento global, mas ele, por si só, não explica um aumento tão abrupto da temperatura do Atlântico. As causas exatas desse aquecimento anormal ainda são incertas, com várias hipóteses em discussão, como a redução da atividade dos ventos alísios no Atlântico e a diminuição das emissões de enxofre por navios, que poderiam estar permitindo que os oceanos absorvam mais radiação solar.
“Não sabemos realmente o que está acontecendo. E não sabemos realmente o que está acontecendo desde março do ano passado. É como se todo o clima tivesse avançado cinquenta ou cem anos para a frente, o que é estranho”, disse à revista New Yorker Gavin Schmidt, diretor do Instituto Goddard de Estudos Espaciais da Nasa.
E daí?
Daí que são os ventos alísios que trazem a umidade do Atlântico para o interior do continente sul-americano, mobilizados pela presença da floresta amazônica e pela dinâmica dos “rios voadores”. O avanço do desmatamento na faixa costeira do Norte e Nordeste também dificulta o movimento dos ventos, reduz a umidade e agrava a estiagem em toda a Amazônia.
Como o calor expande os corpos, o aquecimento das águas provoca o aumento do nível dos oceanos, potencializado pelo derretimento das geleiras terrestres. Também altera o curso de correntes marítimas e torna mais frequentes e intensos os furacões, as erosões costeiras, as ressacas e as ondas gigantes.
A taxa de elevação do nível dos oceanos mais do que dobrou desde os anos 1990, aumenta a cada ano desde 1993 e, em 2023, teve sua maior elevação. Um estudo da Organização Mundial de Meteorologia, divulgado em maio, aferiu uma média global de 3,42 mm/ano, chegando a 3,96 na costa atlântica da América do Sul.
Considerando as reentrâncias, o litoral brasileiro se estende por 9.200 km. Florianópolis, Vitória e São Luís estão situadas em ilhas oceânicas. O aumento contínuo no nível do Atlântico exerce um crescente efeito de barragem sobre a foz dos rios, agravando as enchentes no período de chuvas. Pode-se imaginar a extensão dos impactos que uma maré mais agressiva pode causar em todo o delta amazônico, inclusive sobre a região metropolitana de Belém.
Outras capitais e cidades costeiras têm depressões abaixo do nível do mar, como Recife, e populações vulneráveis a inundações vivendo em palafitas, como o Rio de Janeiro.
Significa dizer que o Brasil é muito vulnerável ao aumento do nível e da temperatura do Atlântico e que a notícia da sua persistência é péssima. O país estará mais exposto a eventos climáticos extremos, sua infraestrutura urbana e turística não é adaptada e está ameaçada.
Mortandade
O aumento da temperatura e do nível do Atlântico vai afetar ilhas, praias, lagunas, manguezais e corais, quebrando as cadeias alimentares e ameaçando todas as espécies marinhas. Comunidades caiçaras serão diretamente atingidas, mas também a indústria da pesca, o turismo, a navegação e os setores imobiliário e de seguros, assim como a oferta de pescado e frutos do mar para consumo da população.
Além disso, é a dinâmica da vida marinha que faz dos oceanos fontes generosas de oxigênio. Na ausência da vida, eles seriam transformados em gigantescos emissores de metano, agravando muito mais a crise climática global. É o frescor da brisa do mar se convertendo em um bafo quente, desagradável, insalubre e destrutivo.
Belém está se preparando para receber a COP-30, conferência internacional sobre as mudanças climáticas, em 2025, mas não está se preparando para os efeitos dessas mudanças. Por exemplo, as obras de infraestrutura que estão sendo feitas levam em conta o evento e as oportunidades de financiamento que ele traz, mas não os riscos climáticos.