O SP Invisível agora tem um podcast: SP Cast
Nesse novo projeto, vamos conversar com pessoas que trabalham, vivem, convivem, militam e são ativistas na cidade.
Diariamente, contamos histórias de pessoas em situação de rua em nossa página no Instagram e no Facebook. Porém, onde que estão inseridas essas histórias? Quais são as complexidades desse território que é a cidade de São Paulo? Sobre tudo isso que vamos conversar no SP Cast, com convidados quinzenais e com a entrevista sempre aqui na Mídia Ninja.
Em nosso primeiro episódio, conversamos com o Padre Júlio Lancellotti. Ativista dos direitos humanos e da vida na rua, ele é uma grande inspiração para o trabalho do SP Invisível. Falamos sobre a pluralidade das vidas nas ruas, os serviços oferecidos para a população em situação de rua, sobre as ameaças que vem sofrendo e sobre os governos atuais, tanto federal, quanto estadual.
Conversamos logo após o padre apresentar para os irmãos e as irmãs de rua, uma pesquisa que ele realizou. Quando a pesquisa estiver disponibilizada, podemos conversar novamente com ele, especificamente sobre esses dados que são apresentados nela.
Confira o papo abaixo ou escute no nosso podcast!
Vinícius Lima: Padre, muito obrigado por aceitar o convite. É uma honra trocar essa ideia com o senhor. Tudo bem?
Júlio Lancellotti: Tudo bem, agradeço de poder estar com vocês nesse momento que estamos vivendo no Brasil e em São Paulo, um momento de muito desafio em que as pessoas em situação de rua aumentam muito. Por isso, esse conceito de visível e invisível, depende de onde a pessoa em situação de rua está. Se ela está num lugar que é vetado, ela é visível. Se ela está num lugar que ninguém se incomoda, ela fica invisível. Não importa se ela morra, sofra ou aconteça o que for. É muito sério esse momento que é um momento que é um institucional da inviabilidade da vida dos pobres.
VL: Pensei em começar falando de outras questões, mas acabamos de viver uma situação do Marcos (que estava na rua) disse que é super grato ao senhor por todo desenvolvimento após sair da rua. É isso que te motiva?
JL: Na verdade, eu que tinha que agradecer o Marcos. A gente nem percebe. Na verdade, ele que fez o seu caminho. Eles são resilientes e resistentes à opressão e encontram dentros da estrutura opressiva algumas respostas, que ainda são pequenas. Imagina a pessoa ficar feliz por ter uma roupa para vestir, ter o que comer, conseguir um trabalho. Isso é o mínimo de dignidade que todo ser humano tem que ter. É importante quando algumas dessas pessoas mantém uma força vital que resiste à toda opressão porque chegar na rua é uma opressão muito grande: não ter uma cama para deitar, uma comida para se alimentar, um afeto, um carinho. Então, essa gratidão que eles expressam me constrange muito porque deveria ser o mínimo, não uma exceção ou um mérito, mas o resultado de uma luta de alguém que resistiu para não ser massacrado.
VL: Você falou do “afeto” agora. Qual a importância dos afetos para essas pessoas?
JL: Eu aprendi a ter uma senha para conviver com eles. É uma senha que me ensinou a como pode ser construída essa convivência. Essa senha é muito afetiva, pois é o olhar. Se você olhar para eles com humanidade, simplicidade, sem preconceito e discriminação, você vai ter uma resposta, seja ela “não quero conversar” ou um sorriso. Então, eu aprendi a captar o olhar. Eu procuro captar o olhar dele. Eles sempre ficam admirados, mesmo quando o grupo é grande, quando eu sei o nome deles. É no relacionamento que sua existência se explicita. Nessa convivência aprendi a chave do olhar. O olhar tem um aspecto afetivo, pois normalmente essas pessoas são olhadas com desprezo, raiva, censura. Você rapidamente decodifica o que está nos olhos das pessoas.
VL: Existem os “moradores de rua” ou cada história é única?
JL: Cada história é única, dentro de um grupo que se reconhece ou conceitua como população que está em situação de rua, mas a população de rua é muito heterogenea. Não tem uma motivação só e não pode ter uma única resposta, a resposta institucional. O interessante dos dados da pesquisa que mostramos acima é que 50% está na rua e 50% está, de alguma forma, em abrigo. Então, as respostas devem ser diferenciadas. O que fazemos é dar uma única resposta várias vezes, enquanto o que temos que fazer é dar muitas respostas de muitas formas, não uma única. Hoje existem dezenas de acolhimentos, mas todos do mesmo jeito. O centro de acolhida, desde 1940 até hoje, são os mesmos, as mesmas metodologias. A única coisa moderna que entrou foi os carregadores de celular, a única novidade na estrutura desde 1940. De resto, é o mesmo horário para entrar, sair, comer, tomar banho. A forma de submissão é a mesma.
VL: Como você entende os serviços oferecidos para a população em situação de rua, tanto de assistência, quanto de segurança, saúde e etc?
JL: As respostas são muito de tutela, não de autonomia. Há uma parte da população que se submete a essa tutela, inclusive interioriza essa tutela, há outra parte que resiste, que quer achar um caminho de autonomia. Por exemplo, na questão da comida. A maior parte deles gosta de preparar o alimento e fazer comida, mas o atendimento institucional tutela, o alimento é dado pronto na quantidade estabelecida pela tecnologia de nutrição. Isso tira deles a cultura, a raiz e a autonomia.
VL: Dá para dizer que esses serviços tentam domesticar?
JL: Usa-se um conceito que, na velhice, eu não gosto mais – tentam torná-los cidadãos. Para mim, cidadão é sinônimo de domesticação. Quanto mais domesticado você for, mais cidadão você é.
VL: Essa domesticação é intencional, há um projeto ou acaba acontecendo, simplesmente, pelo funcionamento da cidade?
JL: Há uma reprodução e há uma intencionalidade. Muitas vezes, as pessoas nem percebem que estão fazendo isso, mas estão. Por isso digo, nós não estamos dando comida, estamos garantindo o direito de alimentação, nós não estamos ajudando, estamos garantindo que as pessoas tenham direitos e possa sobreviver nessa sociedade e nesse sistema onde intencionalmente, eles devem morrer, devem desaparecer. Eles são aquilo que o Papa Francisco chama no Evangelii Gaudium dos descartados e quem está descartado está fora do jogo. É aquilo que uma das autoridades da república disse, “não importa se vão morrer antes de serem aposentados, o que importa é que vamos fazer um caixa de um trilhão ou seja lá o que for”. Ou seja, se vão morrer, ter seus direitos negados, isso não é importante, o importante é a questão econômica.
VL: Qual leitura você faz dessas mudanças de governo, tanto de Temer para Bolsonaro, quanto de Márcio França para Dória, na vida da rua? Qual é o impacto?
JL: O impacto é que estamos percebendo um sucateamento dos serviços da rede socioassistencial. Alguns lugares já estão avisando que não terão como manter a alimentação no mesmo nível mantido. Então, há um sucateamento porque não se cortam privilégios ou acumulação da elite, onde vai tirar é de baixo e da área social que é uma área que incomoda, pois a cidade se incomoda com os centros de acolhida e com o que eles chamam de “vagabundo”. Tudo que o estado neoliberal fizer contra essa população será muito bem recebido. Daqui a pouco, vai ter porte de arma liberado e exceção de ilicitude para bater em moradores de rua que dormem na porta da sua casa. Já como tem para que matar sem terra, paralelamente também vai ter isso com o morador de rua porque ele está “prejudicando o bem público que todos têm o direito de ir e vir”.
VL: Se Jesus voltasse hoje, ele seria confundido com alguém que está na rua e violentado?
JL: O sistema é o mesmo. Temos que entender o texto e o contexto. Sem dúvida, são os mesmos, defendendo o estado, a democracia, os bons princípios cristãos, as pessoas do bem, justificando o extermínio dos pobres.
VL: Sempre houve, mesmo em prefeituras mais progressistas, uma relação de ignorar a vida na rua, mas hoje vejo uma postura de excluir. Existe isso?
JL: Sempre existiu. Não podemos esquecer quando a Rainha Elizabeth II veio para o Rio de Janeiro e para o MASP, foi feito uma limpeza na rua e tivemos aquele célebre episódio no Rio em que jogaram no mar as pessoas. Uma coisa que me chama atenção é os moradores de rua que montam e desmontam toda estrutura dura do Lollapallozaa, mas não podem ver o show, ficar lá, nem ser visto. Mas são eles que garantem a visibilidade dos artistas, na medida que carregam essa estrutura. Então, essa exclusão e institucionalização é uma forma de tirá-los do espaço público. Se for olhar hoje, quais espaços públicos são mais frequentados na cidade? Os shoppings. Os moradores de rua podem entrar no shopping? Dificilmente, ele caminha 10 metros da porta. Outro lugar muito frequentado são os bancos, os que entram são para pegar algum benefício como o Bolsa-Família. Mesmo em centros culturais, lugares chamados de abertos para uso público, a população de rua não é bem vinda.
VL: Você tem sofrido, e não é de hoje, muitas ameaças. Como que tem vindo essas ameaças? De onde vem? São virtuais ou presenciais?
JL: As virtuais são maiores, são mais presentes, hoje é muito fácil e rápido. Nas redes sociais colocaram, por exemplo, “morte ao Padre Júlio” e coisas bem acentuadas. Presenciais também, em menor escala, mas acontece muito em recado. Os policiais quando agridem os moradores de rua dizem “avisa pro padre que a hora dele vai chegar, vamos chegar nele e etc”. O que não dissocio é a questão pessoal minha com a vida da população de rua. As ameaças vêm por causa da população de rua, sem dúvida.
VL: Então quando eles dizem “vamos matar o Padre”, querem dizer “vamos matar a população de rua”?
JL: Sim, pois é quem está atraindo a população de rua, é quem está trazendo para cá, é quem os defende. Então, temos que eliminar a causa, para não ter mais o efeito que é a presença
VL: O que motiva as pessoas que fazem isso?
JL: O elitismo, o preconceito, a discriminação, o nojo. O que chamamos hoje de aparofobia, a repulsa ao pobre.
VL: São Paulo vive hoje um processo de gentrificação?
JL: Sim e se acentua ainda mais, a cidade vai num caminho e numa velocidade de eliminar e de concentrar o poder, a moradia. Não temos mais políticas de moradia.
VL: Existe alguma solução generalizada que funcione para todos na rua?
JL: Não existe. Na verdade, hoje não existe nada. Só que não há nenhuma solução que dá para dizer, “é para todos e todos vão receber essa solução”.
VL: O que você acha que alguém quer eliminar, quando elimina alguém que está na rua.
JL: Em geral, as pessoas querem eliminar a pobreza, o que as questiona, a repulsa, o medo, o diferente. O que incomoda muito, por exemplo, é que pessoas que estão numa pobreza extrema ainda tem alegria, querem jogar bola, cantam, dançam. Isso agride, por que como essas pessoas estão numa situação tão difícil e querem festejar?
VL: Qual seria uma política ideal?
JL: O problema é que dentro do sistema neoliberal, não vai ter uma política pública adequada. A política pública hoje é o resto que sobra para que eles não morram todos, de repente, porque aí não teria nem onde enterrar. Dentro desse sistema, é o que o Papa Francisco diz, não há solução. Tudo que acontecer vai ser seletivo, para um grupo. Tem que mudar o sistema.
VL: A igreja recebe bem o seu trabalho?
JL: Eu acho que aguenta. Essa tensão social existe dentro da igreja, também. A igreja está dentro da sociedade e a sociedade está dentro da igreja. Ela não é imune, nem isenta das tensões. A igreja é uma instituição multiclassista. Embora querem eliminar a sociologia, quando a sociologia estuda a igreja, reconhece que ela é uma instituição multiclassista. Nem todas instituições são multiclassistas, mas a igreja é. Dentro da igreja há pessoas de todas as classes sociais. Embora alguns dizem que quem inventou as classes sociais foi o marxismo, não, ele apenas reconheceu as classes sociais que estão presentes dentro da igreja, também.
VL: O sistema capitalista é uma religião?
JL: Ah, se tornou e bastante sacralizado. O capitalismo hoje é sacral e o deus do capitalismo que é o dinheiro é o mais venerado. Nunca foi tão venerado. Compare um carro de transporte de dinheiro com uma ambulância do SAMU, uma carregando o povo doente precisando de socorro e outro carregando dinheiro. Compare uma UBS com uma agência bancária. Onde tem mais sofisticação e cuidado? Com certeza, na agência bancária e o carro que carrega dinheiro é muito mais seguro e não sofre nenhum problema mecânico, pois ele carrega dinheiro. Veja se alguém riscar o carro o que acontece e se alguém der uma paulada num irmão de rua, o que acontece, todo mundo se mobiliza muito mais com o carro riscado.
VL: Qual seu sonho para os irmãos de rua?
JL: Eu não tenho um sonho. Eu acho que essa vida que vivemos é um pesadelo. O que precisamos não é sonhar, mas acordar desse pesadelo.
VL: Teria um dia que você poderia dizer que concluiu seu trabalho?
JL: Acho que não, pois sempre deixamos alguma coisa para amanhã. Cada dia tem um problema novo. Cada dia é uma aventura de conhecer, reconhecer, encontrar, desencontrar. Nunca completou. Acontecem coisas boas, mas também coisas tristes e difíceis.
VL: E quem quer ajudar o seu trabalho, como que faz e como te encontra?
JL: Eu to todos os dias pela manhã na Paróquia São Miguel Arcanjo, mas principalmente, uma coisa que todo mundo pode fazer e não precisa se engajar em grupo nenhum, mas todos podem fazer. Não falem mal do povo da rua, não falem coisas ruins contra eles. Olhe para eles, converse, cumprimente, veja de uma outra forma, seja amigo deles. Isso todo mundo pode fazer. Ninguém proíbe. Mude seu olhar, seu sentimento, sua maneira de ser e de agir. Isso todos podem fazer e vai ajudar muito. Não seja um acumulador, partilhe, conviva e apoiem propostas que sejam propostas de dignidade e de vida. Não apoiem facínoras que odeiam o povo e os pobres.
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