O Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, nunca deveria ser entendido como uma data isolada ou meramente simbólica. Ele funciona como um convite, insistente e urgente, para revisitar a história e reconhecer que boa parte do que entendemos como identidade carioca nasceu de experiências, lutas, saberes e resistências negras, assim como o exemplo de Zumbi dos Palmares. E esse reconhecimento não é apenas moral: ele é factual.

Segundo o Censo de 2022 do IBGE, 54,3% dos habitantes da cidade do Rio de Janeiro se declaram negros. Majoritariamente, a cidade é negra, mas sua memória urbana e histórica ainda é narrada como se fosse exceção. A paisagem do Rio é uma colcha de retalhos feita por mãos negras. Basta olhar para o mapa afetivo e cultural da cidade.

A Pedra do Sal, por exemplo, não é apenas um ponto turístico ou um cenário de rodas de samba contemporâneas, é um santuário da diáspora africana, espaço de moradia, trabalho e convivência de comunidades negras libertas e escravizadas no século XIX.

Da mesma maneira, o Cais do Valongo, reconhecido como Patrimônio da Humanidade, foi a principal porta de entrada de africanos escravizados nas Américas. Ignorar seu significado é apagar o maior crime cometido em território brasileiro e, paradoxalmente, o fundamento da força cultural do Rio.

A chamada Pequena África, região que se estendia do Porto ao Morro da Conceição, é outro testemunho vivo dessa presença. Ali floresceram tradições que moldaram a cara do Brasil como o samba, os cultos de matriz africana, os modos de sociabilidade e a própria reorganização comunitária durante e após a escravização.

Foi nesse ambiente que atuou Tia Ciata, ialorixá e uma das principais articuladoras culturais da cidade. Da sala de sua casa saíram os primeiros passos do samba urbano carioca. Sem ela, o gênero que hoje representa o país não teria encontrado guarida. Também é impossível falar do Rio sem mencionar figuras como Madame Satã, artista, malandro, símbolo da boemia e da resistência LGBTQIA+ negra.

Assim como Cartola, que transformou sofrimento em poesia e ajudou a fundar a Estação Primeira de Mangueira; e Mercedes Baptista, primeira bailarina negra do Theatro Municipal, e pioneira da dança afro-brasileira, cujo legado ainda é pouco reconhecido.

A própria trajetória de André Rebouças, engenheiro abolicionista, mostra como intelectuais negros também projetaram o país, ainda que muitas vezes tenham sido “embranquecidos” pela história oficial.

No campo político, nomes como Benedita da Silva mostram que a luta continua. Primeira senadora negra do Brasil, ex-governadora do Rio e símbolo da resistência popular, “Bené”, como a chamo carinhosamente, personifica a persistência da população negra em ocupar espaços de poder historicamente negados.

Assim como Marielle Franco, minha amiga, com quem pude caminhar e militar durante tanto tempo nos meandros políticos, e que teve sua vida ceifada de forma violenta e precoce devido à sua atuação em defesa dos direitos humanos e das pessoas vulnerabilizadas dessa cidade.

Essas personalidades não são capítulos soltos da história, são pilares e, ao lado delas, os territórios negros são igualmente protagonistas. Madureira, por exemplo, pode ser lida como uma capital cultural em si mesma. Terra do jongo, berço da Portela e do Império Serrano, espaço onde tradições africanas seguem pulsando com vigor.

Representando o samba em sua essência, o Terreiro de Crioulo, centro negro cultural em Realengo, também é parte desse ecossistema cultural que mantém viva a memória ancestral que o Rio insiste em romantizar, mas nem sempre valoriza de fato.

Celebrar o Dia da Consciência Negra no Rio é reconhecer que a cidade não seria o que é, estética, política, cultural e espiritualmente, sem sua população negra. É assumir que o passado não está morto, ele vive na rua, no batuque, no corpo que dança, na fé que resiste nos terreiros, na fala atravessada de história, nos bairros que ainda guardam marcas de quilombos, irmandades e coletividades que recusaram a desumanização.

O Rio é uma cidade plural e, por isso, se vê como uma cidade negra. Não por idealismo, mas porque essa é a sua verdade. Recontar essa história, valorizar esses nomes e proteger esses territórios é uma tarefa política, coletiva e urgente, não apenas para 20 de novembro, mas para todos os dias em que o Brasil insistir em apagar aquilo que, na verdade, o constitui.