É com muita alegria que volto a escrever aqui na minha coluna e a contribuir com a Mídia Ninja. Fiquei um tempo parado na escrita, cuidando de questões pessoais, me cuidando, focando em outros projetos, mas o mais importante: sempre na rua, sempre com os invisíveis e com os excluídos e excluídas da cidade. Quer me encontrar? É ali que estou. Essas redes aqui acima são só um detalhe.

Bom, deixa eu primeiro me apresentar, antes de apresentar esse novo projeto. Eu sou o Vinícius Lima, mais conhecido como Vini Lima. Sou co-fundador, junto com o André Soler, do SP Invisível, um movimento de conscientização da sociedade através de histórias de pessoas em situação de rua ou de moradores de rua, como quiserem chamar (na dúvida, pergunte a um deles).

O projeto existe a 4 anos e já contamos mais de 500 histórias que nos ajudou a crescer de uma maneira muito gratificante, tornando-se o maior projeto atuante na causa, em se tratando de alcance nas redes. Hoje, além de contar histórias, também fazemos ações para conectar pessoas como eu e vocês (gosto de chamar de “pessoas em situação de casa”) com as pessoas que estão na rua, então já fizemos o Natal Invisível, o SP Sem Frio, o Carnaval Invisível e até a Páscoa Invisível.
Só que apesar de termos contado tantas histórias de quem está na rua, sempre senti falta de contar as minhas histórias, mostrar alguns bastidores dessas conversas, algumas impressões e pensamentos que eu tinha. Essas coisas são muito ricas, mas nunca soube o momento certo de mostra-las, nem como fazer isso.

Foi aí que tive a ideia de escrever um livro com essas histórias. Um livro que comente cada história que me marcou e mostre “O Que Aprendi Conversando Com o Invisível”. Achei isso uma ótima oportunidade de voltar a contribuir com a Ninja e quando falei com o pessoal, na hora toparam fazer um livro-coluna. Todos os textos que eu fizer para o livro, vou publicar primeiro aqui e no final vou compilar todos e mais alguns e lançar esse sonho. Com certeza, ele vai ser maior do que pensei, com o apoio dessa galera da Ninja!

Espero muito que vocês acompanhem e gostem! Vamos nos ver muito ainda nesse segundo semestre. Torço para que essas histórias te incomodem a ponto de não conseguir mais fechar os seus olhos para o invisível. Muito obrigado.

GENIVAL – 17/03/2014

“Eu sou o Genival. Tenho 50 anos. Nasci e cresci em São Paulo, não tenho mulher nem filhos. Sou o filho mais velho. Quando eu tinha 14 anos meu pai morreu e tive que trabalhar de pedreiro para bancar minha mãe e meus irmãos.
Quando tinha 20 anos recebi uma proposta de emprego no interior que prometia mudar minha vida! Pensei: “vou ganhar muita grana!”. Cheguei lá e não era nada daquilo, nada mesmo, porque a tal empresa nem existia.

Como estava lá, tentei tocar a vida por aqueles cantos, mas não consegui. Decidi voltar pra São Paulo e aqui estou. Procurei minha família e nunca mais achei. A rua virou minha casa e passei a ser invisível para os que são “visíveis”. Esse pessoal não me dá bom dia, você acha que vão me dar oportunidade?”

https://www.facebook.com/spinvisivel/photos/a.598272883590717.1073741828.598268693591136/601469743271031/

 

Não me lembro bem da primeira vez que conversei com alguém que estava em situação de rua. Deve ter sido entre meus 12 e 14 anos em algum projeto social da escola ou da igreja que visitou a Missão Cena, uma ONG muito querida que tem um trabalho maravilhoso com essa população no centro da cidade de São Paulo, especificamente na região da Cracolândia.

Tanto o meu colégio, quanto a igreja que eu frequento sempre tiveram projetos lá que proporcionavam aos adolescentes essa experiência de servir pessoas excluídas desse nosso sistema.

Porém, embora eu tenha algumas lembranças sobre esse primeiro contato como o lugar, minha idade e o contexto, eu não me lembro muito bem da pessoa com quem eu conversei naquele dia. Não sei se era um homem ou se era uma mulher, se era jovem ou idoso, se ainda está na rua ou não, e vergonhosamente, nem me lembro do que essa pessoa me contou.

Pensando dessa maneira, pode até parecer que eu a ignorei ou que nem prestei atenção em nada do que ela disse, mas a verdade é que talvez, pra mim, aquela pessoa ainda era invisível, por isso sua história não fixou em mim.

Hoje, eu consigo ver que isso aconteceu porque eu estava condicionado a pensar que “nós” aqui da igreja, da escola, com estudo, os “desconstruídões”, os justiceiros, vamos ajudar “eles” que estão necessitados. Eu não tinha nenhuma noção do fato de quem estava naquele dia recebendo o serviço da Missão Cena era igualzinho a mim e a você, não era nem melhor, nem pior. Pelo contrário, tinha uma visão totalmente verticalizada desse dialogo com o outro. Isso o invisibilizava. Na minha frente, eu não via um ser humano, mas um coitado.

Embora, eu não aconselhe ninguém que interaja com alguém dessa maneira que fiz acima, tenho plena consciência de que isso não deslegitima o quão marcante foi essa experiência para mim naquela época, pois não posso exigir essa compreensão de alguém de 14, 15 anos. Talvez ali tenha sido plantada uma primeira semente pra eu me tornar o que tenho me tornado.

Contei essa história para mostrar que, mesmo na nossa frente, as pessoas podem ser invisíveis se não enxergamos a sua história e sua trajetória. O relato acima é um exemplo claro de como não ler esse livro, não leia achando que as pessoas acima são coitadas, mas também não leia acreditando que são os erros que cometeram, não as rotule de “noia”, “bandido” ou seja lá o que for… Leia através das lentes do amor, a lente que enxerga o invisível. Cada dia que passa, tenho ajustado essa lente nos meus óculos para ver a vida e as pessoas.

A primeira vez que usei essas lentes do SP Invisível foi em 2014, quando conheci o Genival. A sua foto na página tem uma qualidade bem pior do que as que tiramos hoje, mas é muito significativa e foi postada no dia 17 de março daquele ano. A imagem foi tirada na Praça Cornélia, na Vila Romana, um bairro de classe média na Zona Oeste de São Paulo. A tal praça onde encontrei o Genival fica ao lado da casa da minha avó. Hoje, a postagem tem 360 curtidas, o que nunca quis dizer nada, mas isso só fomos aprendendo com o tempo. Na época, achávamos esse número enorme e ficamos vislumbrados com isso.

No dia em que encontrei com o Genival, eu me lembro que não foi na Praça Cornélia que eu o vi exatamente, mas uns três quarteirões antes de chegar nela. Só que o nervosismo e a inexperiência me fizeram travar, e não consegui fazer nada, além de segui-lo. Não sabia como aborda-lo, não queria ultrapassa-lo e estava animado demais para deixar de lado essa missão.

Eu queria muito começar o SP Invisível. Estava nervoso porque não sabia o que falar, não sabia como falar e nem o que ele ia responder. Já a inexperiência, ela ficava evidente porque eu não sabia como explicar o projeto, uma vez que ele não existia, não sabia até que ponto eu era invasivo ou não e também não sabia tirar uma foto (não que hoje eu faça isso muito melhor, rs).

O que mais me chocou nessa conversa foi a história da proposta de emprego que era mentira numa empresa fantasma. Na minha ingenuidade, só tinha visto isso acontecer em filme ou na novela, nunca tinha visto na prática uma vítima tão cruel desse sistema, do capital. Hoje sei que toda pessoa em situação de rua, independente da história, independente se chegou na calçada por algum problema financeiro, familiar ou com drogas, é uma vítima da maneira que o capital atua. Além disso, com o tempo, fui vendo que são muito comuns esses golpes com as pessoas que estão na rua por ser uma mão de obra barata e que topa qualquer coisa para sair dessa situação.

Outra coisa que me chamou muita atenção, não na hora, mas hoje ao reler essa história é a quantidade de pessoas que tem a família desestabilizada quando perdem o pai. Sempre que ouço isso, eu fico extremamente grato, mas ao mesmo tempo eu vejo como sou parecido com essas pessoas que estão na rua porque eu perdi também o meu pai quando eu tinha 5 anos, mas graças a uma rede de apoio enorme que eu tive, não aconteceu nada comigo: não precisei trabalhar, muito menos fui morar na rua. Muitas vezes, antes de perder tudo, alguém que foi parar na rua, perdeu seus relacionamentos.

Por último, admito aqui que esse “visíveis” foi algo que acrescentei. Ouvi o áudio do nosso papo novamente enquanto escrevo isto e o que o Genival tinha dito quando perguntei se ele se acha invisível (pergunta muito comum nos bate-papos) foi, “a rua virou minha casa e eu sou invisível sim para essas pessoas”. Para não repetir várias vezes, “pessoas”, usei o “visíveis”. Algo que não muda o sentido, apenas a palavra. Peço licença aqui, a vocês visíveis para chamar vocês desse jeito. Muito obrigado!

Fazia tempo que eu não rolava o feed das postagens do SP Invisível até a primeira história que contamos. Porém, acredito que não exista uma maneira melhor de começar um projeto como esse em que pretendo mostrar alguns pensamentos, impressões, lembranças e bastidores sobre as histórias, do que o começo, do início desse movimento que busca abrir os olhos das pessoas e sensibilizar os corações para o invisível. Espero que gostem.