O que a ciência faz para confiarmos nela?
Há coisas que são atemporais no cosmos, como a ideia de invenções.
Há coisas que são atemporais no cosmos, como a ideia de invenções. Estava conversando com um grande amigo, com quem tenho uma sociedade, e falávamos sobre projetos de robótica e educação maker que envolvessem nossa religião. Pois bem, ele me relatou algo que me fez arrepiar com a existência e a consagração de orixá na terra.
Ele me contou que a escolha de sua profissão se deu por que ele foi criado desde criança em terreiro. Ele foi escolhido por ÒGÚN (muitas palavras no yorubá que tem a mesma escrita ou fonética parecida e significam muitas coisas além do orixá), e desde então tomou isso para si. Entendeu-se como centelha de ÒGÚN na terra e foi estudar como processar materiais, virando um inventor. Ele disse que sua profissão é um ato de fé, um ato de ser parte de ÒGÚN.
Em 2018 foi lançado um supercomputador pela Federação das Indústrias do Estado da Bahia (FIEB) batizado de CIMATEC Ògún, em homenagem ao orixá. Mas entendo que devemos ir um pouco além dos processos de descolonização linguística. Podemos levantar uma discussão muito necessária sobre até quando vamos carregar essa ideia iluminista e eurocêntrica de ciência. Afinal, a construção sangrenta da sociedade brasileira se deu sobre corpos mutilados a partir de atos violentos de sequestro, estupros e da lógica escravocrata alimentada no século XVIII e XIX, com um plus que foi chamado de eugenia, desqualificando novamente qualquer forma de saber que não fosse o empirismo falseado e embalado em teorias raciais nazifascistas (que permanecem até hoje). Ou seja, nossa ciência resguarda o processo violento de sua origem.
Não assumir uma ciência construída através de nossos itans e das tecnologias de várias nações originárias é com certeza dar um tiro bem dado no pé. Não estou aqui, inocente, achando que essa é a intenção de algum órgão público. Na verdade, a provocação é a de imaginar que seja possível reformular as tecnologias de uma forma cósmica, seguindo outro ritmo (talvez circular) de como se faz ciência. Acredito em um espaço onde possam ser respeitadas e praticadas nossas essências no que chamam de tecnologias. ÒGÚN é o dono dela para nós e não vejo falar de ÒGÚN em faculdade. Lógico, a arrogância ocidental talvez nunca tenha entendido o quanto pequeno somos diante dos fatos além-mundo.
Por mais empírico que sejamos em hipóteses e teses, talvez tenhamos que levar a sério os sinais de evidências do que desconsideramos e chamamos de fé. O preconceito com pessoas que simplesmente acreditam apenas afasta a ciência da população no geral. Acontecem coisas que a ciência não consegue explicar, mas será que é isso mesmo? Ou ela ainda não chegou perto destas outras formas de fazer ciência?
Eu entendo que esses ataques à ciência são manipulados por partes reacionárias da sociedade, que propagam fake news e têm um projeto de extermínio em massa. É mais uma faceta eugênica do mesmo processo dos séculos passados, pelo qual a ciência deve assumir sua culpa. Ao afastar as pessoas dela para manter um ego inabalado com seu status prepotente de saber, a ciência ocidental torna-se muito individualista, não fazendo parte de nada que a sociedade de “mortais” entende por realidade, tornando-se burocrática. Está dando no que deu.
Ninguém é obrigado a ser academicista para ser valorizado, mas durante muitos séculos isso foi (e é) um passaporte para ser aceito e ser ouvido. Durante meus anos como professora de universidade vi diversas coisas, mas uma das coisas mais tristes é o poder do diploma em uma sociedade meritocrática. Esta ciência e o jeito de fazê-la nos tira o prazer da descoberta: não há gosto pelo saber, só há gosto em estar diplomado diante de uma sociedade escravagista. É preciso construir urgentemente outras plataformas de saber que levem em consideração os processos holísticos da vida. Algo que não tem nome ainda, um compartilhamento de griôs, uma prática de terreiro cientifico, um coletivo cósmico de saber, um abrir de asa-deltas para a grandeza do universo, sem medo de errar, um viver de descobertas. Como uma criança conhecendo um mundo descolonizado e livre para entender toda a grandeza de ÒGÚN. Ògún Iyè! Que os caminhos estejam abertos para a humildade de entender que somos grãos de areia diante do universo.
Esse texto teve como revisora minha grande amiga artista cientista: Clarissa Reche