O presidente pode matar?
Fernando Collor foi deposto por corrupção. Dilma Rousseff, por pedalada fiscal. Roubar dinheiro público e produzir rombo fiscal são práticas graves, geram danos à população e a lei prevê sua punição, com a perda do mandato presidencial. E matar? Pode? Essa é a pergunta que não quer calar.
Fernando Collor foi deposto por corrupção. Dilma Rousseff, por pedalada fiscal. Roubar dinheiro público e produzir rombo fiscal são práticas graves, geram danos à população e a lei prevê sua punição, com a perda do mandato presidencial. E matar? Pode? Essa é a pergunta que não quer calar.
Claro que não há como atribuir ao presidente, ou a quem quer que seja, a causa da tragédia inédita que se abate sobre a população brasileira, com mais de 7 milhões de infectados e de 180 mil mortos por Covid-19. Mas já não há como negar que atos e omissões do presidente e do seu governo agravam as consequências da pandemia, alongando a crise sanitária e o número de vítimas.
Desde o início da pandemia, o presidente optou por confrontar a verdade, com seguidas declarações minimizando a gravidade da doença (“gripezinha”) e das mortes (“E daí?”). O presidente afrontou, publicamente, todas as normas sanitárias mundialmente recomendadas para se enfrentar a pandemia, promovendo aglomerações, sem uso de máscara e sem respeitar o distanciamento necessário entre as pessoas. Bolsonaro e a maior parte dos seus ministros foram infectados e o Palácio do Planalto virou foco de contaminação.
Em 11/04, quando ultrapassamos as primeiras mil mortes, o presidente declarou que “o vírus já estava indo embora” e, agora, em 11/12, com os números indicando o recrudescimento da epidemia, com aumento de internações e rumo a 200 mil óbitos, o chefe da nação disse que a pandemia “já está indo embora”.
Confrontar a ciência e as evidências, espalhando o pior exemplo, é falta gravíssima, letal, criminosa. O primeiro ato pode ter sido “culposo”, fruto da ignorância, mas os seguintes, que desprezam as consequências dadas, caracterizam “dolo”, ou teimosia assassina deliberada.
Mas o presidente foi muito além de reiterar declarações falsas e exemplos nefastos. Ele promoveu a cloroquina, que é comprovadamente ineficaz para a cura da doença e pode provocar efeitos colaterais, investindo milhões na importação de insumos para a sua fabricação pelo Exército e determinando a sua distribuição até entre indígenas yanomami.
O presidente detonou ministros e o próprio Ministério da Saúde, entregando-o a um general despreparado e apalermado, que, em vez de atuar como ministro, aceita ser mero ajudante de ordens, que corrobora qualquer idiotice do superior sem poder orientá-lo e, ao contrário, se contradiz a cada dia frente a questões fundamentais. Funções técnicas foram militarizadas e a incompetência campeia solta, como mostrou o episódio do “esquecimento” de sete milhões de testes de Covid-19 num galpão do aeroporto de Guarulhos.
O presidente foi incapaz de liderar o país diante de crise tão grave. Jamais reconheceu o caráter heróico dos profissionais de saúde que enfrentam diretamente a epidemia. Multiplicou litígios com governadores e prefeitos, politizando uma questão que deveria unir a todos. Foi preciso que o Congresso Nacional aprovasse uma lei para instituir um plano específico de combate à epidemia entre povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais. Foi preciso acionar o Supremo Tribunal Federal (STF) para que o governo apresentasse um plano – ainda sofrível – de vacinação da população em geral.
Trajetória criminosa
A questão da vacina deveria encerrar, de maneira trágica e bestial, a trajetória criminosa do presidente no trato da pandemia. Em outubro passado, quando vários países investiam no desenvolvimento de vacinas e no planejamento da vacinação, o presidente dizia: “todo mundo diz que a vacina que menos demorou até agora foram quatro anos. Eu não sei por que correm em cima dessa. Eu dou a minha opinião pessoal: não é mais barato e mais fácil investir na cura do que até na vacina?” Quanto o presidente acha que valem milhares de vidas?
Fato é que, enquanto vários países iniciam a vacinação em massa, o governo federal não sabe dizer quando disporá de imunizantes, sendo que os acordos já fechados, ou em negociação, para seu fornecimento são insuficientes para atender o conjunto da população. O plano apresentado ao STF é uma confissão de negligência, que despreza a urgência imposta por centenas de mortes diárias.
E o pior: Bolsonaro instaurou, por motivos políticos, uma “guerra da vacina”, levantando falsas suspeitas contra a Coronavac, produzida pela China e que será disponibilizada no Brasil em parceria com o governo de São Paulo, por meio do Instituto Butantã. O mandatário ameaça, agora, editar uma Medida Provisória para, tardiamente, centralizar a vacinação, envolta na suspeita de que seu objetivo é tentar evitar que São Paulo, assim como outros estados que se interessam pela Coronavac, iniciem a imunização da população antes dos que se mantém dependentes do fornecimento federal.
A ignorância, com certeza, permeia os atos e omissões do presidente diante da pandemia. Mas ela não pode lhe servir como álibi, pois é deliberadamente reiterada o tempo todo, como uma inabalável profissão de fé na própria morte. Numa cerimônia militar na semana passada, Bolsonaro pronunciou uma frase de sublime aparência: “a liberdade vale mais do que a própria vida!” Mas o seu verdadeiro sentido é aterrador: ele não se importa em sacrificar milhares de vidas para boicotar as medidas de isolamento social e de prevenção que podem salvar milhares de vidas.