“O patriarcado é um juiz”. Processada por comentar o caso Mari Ferrer
O grito por Justiça para Mariana Ferrer foi para todas as vítimas. A absolvição no caso de Mariana, um ataque a todas nós. Os processos contra quem se posicionou são inadmissíveis.
Em 2020 fui uma das milhares de vozes, nas ruas e na internet, que pediram justiça para a jovem Mari Ferrer. Na época, utilizei as redes sociais e coluna na Mídia Ninja para me posicionar contra a cultura do estupro que estava em debate na sociedade, para dizer o que deveria ser óbvio: O Brasil só faz de conta que não entende, mas estupro não é sobre sexo, é sobre poder!
Hoje, torno público que fui processada, anos depois, por na época criticar a cultura de culpabilização das vítimas de estupro, algo que está além da sentença em questão. Esse debate foi levantado no caso Mari Ferrer quando foram amplamente divulgadas críticas à sentença que absolveu o réu. Essas críticas reacenderam discussões sobre o peso da palavra da vítima e resultaram em milhares de manifestações defendendo o peso dela e a desnaturalização da cultura do estupro.
Mas não fui a única processada, o juiz do caso Mari Ferrer ajuizou 175 ações de danos materiais e morais (informação pública que pode ser confirmada no site do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina), todas idênticas e com o mesmo pedido: indenização por danos morais, em decorrência de publicações na internet sobre o caso. Uma delas, a minha, com um detalhe especial, questionando meu direito de expressar minha indignação com o ocorrido por minha ocupação na política, uma co-deputada estadual eleita e na época candidata.
Pois ora, eu disputei e disputarei as eleições para quê, se não para defender o fim da violência contra as mulheres, maioria negras, como eu, no Brasil?
A luta coletiva que faço no movimento de mulheres em São Paulo segue afirmando que estupro é sobre poder, pois milhares de vítimas seguem sendo revitimizadas na justiça, no congresso nacional, nas delegacias e na sociedade.
De lá pra cá, o Senado Federal aprovou a Lei 14.245/21, que prevê punição para atos contra a dignidade de vítimas de violência sexual e das testemunhas do processo durante julgamentos, tal lei é chamada de “Lei Mari Ferrer”, em referência aos atos de revitimização no julgamento de seu caso.
Mesmo assim, não consigo respirar aliviada, não por conta do processo na Justiça, mas porque uma pessoa é estuprada a cada 8 minutos no Brasil, maioria meninas e mulheres negras, segundo o Relatório Anual Socioeconômico da Mulher (Raseam), lançado em 2024 pelo Ministério das Mulheres.
Há menos de 200 anos estupro é considerado crime, mas apenas 5% das vítimas vão à polícia e a uma unidade de saúde (Fonte: Instituto Patrícia Galvão).
As vítimas, quando crianças, menos de 4% das meninas de 10 a 14 anos grávidas por estupro têm acesso ao aborto legal no Brasil (Fonte: Intercept). Mesmo assim, tramita com urgência no Congresso Nacional o projeto de lei 1904/2024 que quer limitar o direito ao aborto legal de vítimas de estupro no Brasil após a 22ª semana de gestação, aplicando uma pena equiparada ao crime de homicídio, de 20 anos, como forma de punição em quem realizar o procedimento. Tal pena é maior do que a sentença em crime de estupro!
Como respirar aliviada quando precisamos barrar mais esse ataque às conquistas legislativas que os movimentos de mulheres arrancaram com muita luta? É preciso frear esse ataque à razoabilidade e à vida das mulheres e pessoas que gestam, barrar a busca desenfreada do poder patriarcal em punir quem não se cala.
Sigo com as mesmas perguntas feitas na coluna para Mídia Ninja em 2020: mas e se tudo isso acontecesse com uma comerciária, uma mulher pobre? Ou se fosse uma mulher negra? O caso chegaria à imprensa? Será que o ministro Gilmar Mendes manifestaria sua indignação com a falta de acolhimento da vítima pelo sistema judicial? O Senado aprovaria uma lei dessas? E as outras 65.999 vítimas de estupro em 2018? Ou outras tantas milhares nos anos seguintes? Quantas tiveram as condições emocionais e materiais para levar adiante a denúncia? Quantas estão sendo tratadas de forma igualmente ultrajante ou ainda pior que ela?
De lá pra cá, o número de estupros aumentou 14,9% no Brasil, segundo o levantamento Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), por isso, não podemos naturalizar que o questionamento ao judiciário feito por uma pessoa como eu e outras centenas de milhares de vozes que se solidarizaram a Mari Ferrer naquele ano, seja considerado um dano moral, individualizado, de um juiz.
O silêncio nunca foi nossa ferramenta, por isso estamos vivas. Por nós, por todas nós, protocolamos essa semana minha defesa na justiça, uma defesa da liberdade de expressão, pelo direito de ser mulher negra em movimento contra a cultura do estupro. Por todas que lutaram antes de nós contra a naturalização da nossa violência, essa luta precisa continuar!
“O patriarcado é um juiz
Que nos julga por nascer
E nosso castigo
É a violência que não vê
Feminicídio
Impunidade para o assassino
Desaparecimento
O estupro e o sofrimento
E a culpa não era minha, nem onde estava, nem como me vestia
O estuprador é você
É a PM
Os juízes
O Estado
O Presidente
O Estado opressor é racista estuprador”.
“Un violador en tu camino”
Ecoou a música e performance “Un violador en tu camino”, criada pelo coletivo feminista Las Tesis, Chilenas de Valparaíso, por todo o mundo, em dezembro de 2019, que eu faço mensão no título deste texto, em tradução livre. Essa performance e grito encorajou milhares de vítimas a não se calarem.
* Simone Nascimento é Feminista negra, ecossocialista e da periferia de Pirituba, bairro de São Paulo. Está CoDeputada Estadual da Bancada Feminista do PSOL e em 2024 é pré-candidata a vereadora da cidade de São Paulo. Jornalista formada na PUC-SP através do Prouni e mestranda na USP, é da coordenação nacional e coordenadora estadual do Movimento Negro Unificado SP, integra a Marcha das Mulheres Negras de SP e é cofundadora do Movimento RUA – Juventude Anticapitalista