O papel de Arthur Lira no atentado aos direitos indígenas
O presidente da Câmara dos Deputados, servil aos propósitos anti-indígenas de Bolsonaro, fez aprovar um requerimento de urgência para votar, em plenário, o projeto de lei que pretende legalizar a garimpagem predatória em terras indígenas
Em 9 de março, o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), servil aos propósitos anti-indígenas do presidente da República, Jair Bolsonaro, fez aprovar um requerimento de urgência para votar, em plenário, o projeto de lei 191/2020, que pretende legalizar a garimpagem predatória em terras indígenas, além de facilitar, nelas, a construção de estradas e de hidrelétricas, o plantio de transgênicos e a pesquisa e lavra mineral, independentemente da vontade das comunidades indígenas. Com a aprovação da urgência, o projeto poderá ser votado a qualquer momento, sem tramitar em comissões técnicas, sem consulta aos índios, sem qualquer discussão sobre as suas consequências para a política mineral, o meio ambiente, a Amazônia e as mudanças climáticas.
A imposição do regime de urgência é um jogo casado com a farsa promovida por Bolsonaro ao dizer que, diante dos impactos da guerra na Ucrânia sobre o mercado de fertilizantes, explorar jazidas de potássio supostamente existentes em terras indígenas seria a salvação do agronegócio. A farsa foi prontamente desmentida e a aprovação da urgência repercutiu muito mal. Lira anunciou, então, a criação de um “grupo de trabalho” – figura estranha ao regimento interno – para discutir, em 30 dias, o texto a ser votado em plenário.
Passados 30 dias, o GT não foi formado, mas o projeto foi publicamente rechaçado, como há muito não se via em um debate desse tipo. Não apenas pela oposição expressa por sete mil representantes indígenas de todas as regiões do Brasil, que estão, há dez dias, participando do Acampamento Terra Livre, no centro de Brasília. O projeto foi rejeitado também pelos geólogos, empresas de mineração, cientistas, artistas, ambientalistas, jornalistas e políticos de vários matizes. A urgência só interessa ao Bolsonaro, à mineração ilegal e às bancadas predatórias, que seguem o comando de Lira.
Sem méritos
Na semana passada, Lira mudou o ritmo, mas não o tom da conversa. Disse que o projeto será votado “ainda este ano” e que o assunto precisa ser resolvido, mas que ele não tem “compromisso com o mérito”. A combinação dessas expressões sugere que Lira tem plena consciência da deficiência de conteúdo do projeto e, portanto, da inviabilidade do regime de urgência.
Aliás, ainda no final de março, Lira tinha dado uma declaração ainda mais controversa, no sentido de que o tal GT (inexistente) deveria ser ampliado, para discutir, também, o “novo” Código de Mineração”, já que um outro GT, não mais existente, não havia chegado a um acordo a respeito no ano passado. É mais ou menos como reconhecer que, de GT em GT, não se resolve nem o mais e nem o menos. E que, ao atentar contra os direitos indígenas, o PL atinge a própria política mineral.
O maior demérito do PL-191 é o de pretender anular a Constituição através de uma lei ordinária. A CF veda garimpagem predatória em terras indígenas, mas o PL quer deixá-la como está. Só o Congresso pode autorizar pesquisa e lavra em terras indígenas, mas o PL quer excluir dessa exigência as terras que o governo não quer demarcar. A CF manda ouvir as comunidades afetadas, mas o PL recusa escutá-las, caso rejeitem a mineração em suas terras. A CF a condiciona ao interesse nacional, enquanto a Polícia Federal constata vínculos crescentes entre a garimpagem predatória e o narcotráfico.
Mal comparando
Lira compara a suposta necessidade de legalizar garimpos predatórios em terras indígenas com a suposta necessidade de legalizar a abertura de cassinos. Para ele, tudo é um jogo “para gerar empregos e divisas”. Sua retórica é formalizar o Brasil real. Nessa lógica, também seria o caso de legalizar o crime organizado, o estupro, o trabalho escravo e outras práticas frequentes nesse mesmo Brasil real, mas que ele não se aventurou a explicitar.
Porém, a predação mineral não é comparável à instalação de cassinos, ainda que fosse em terra indígena. A garimpagem em escala não respeita o trabalho formal, promove a prostituição, espalha doenças, desmata, destrói os cursos d”água e contamina, com mercúrio, as águas, os peixes e os ribeirinhos, além de prejudicar a navegação, a pesca e o turismo. Seria Lira um idiota, que ignora diferenças tão fundantes?
Não! Lira não é só o Pôncio Pilatos dessa história. O seu papel é mais proativo, de pautar os retrocessos e operar o orçamento secreto para forjar maiorias e forçar a barra pelo que há de pior e, ainda, dissimular, como se fosse apenas um gestor de interesses predatórios e, não, o próprio predador. Pode até ser que ele não tenha compromisso com a letra do projeto, mas aprova a sua essência: a apropriação, por terceiros, das riquezas naturais das terras indígenas e a destruição dos seus próprios modos de viver. Se não fosse por isso, ele nem teria porque forçar tanto essa barra.
Descrédito
Foi com essa mesma postura de carrasco legislativo que Lira fez aprovar na Câmara a chamada pauta predatória: estímulo à grilagem de terras públicas, redução do licenciamento ambiental a processos meramente declaratórios e a liberação de agrotóxicos mesmo sem aprovação da Anvisa. É por essas e outras que os artistas que se manifestaram em Brasília estiveram com o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, mas não com Lira. Que também não foi procurado pelo movimento indígena durante o ATL desse ano, como ocorreu no ano passado. São sinais claros da erosão de credibilidade que afeta Arthur Lira como mediador para assuntos de efetivo interesse nacional.
Nessa terça-feira, Lira reiterou a intenção de remeter a discussão sobre mineração em terras indígenas para outro GT, que trataria do “novo” Código de Mineração. Por um lado, ele parece já ter rifado o GT que não chegou a ser constituído, mas pode ser que ele esteja achando mais fácil legalizar a predação mineral num marco legal mais geral, para, então, estendê-la às terras indígenas. Assim como pode ocorrer que, de GT em GT, não se chegue a lugar nenhum, no que seria, por incrível que pareça, o cenário menos pior para um mau momento como este.