O medo e a esperança – Parte 2
Para aferir melhor como afloram os sentimentos de medo e de esperança nos corações das nossas gentes neste momento tenso de pandemia, ouvi, também, a opinião da Elizângela da Silva Costa, índia da etnia Baré, falante da língua nhengatu e moradora da Terra Indígena Marabitanas Cué-Cué, no município de São Gabriel da Cachoeira.
Para aferir melhor como afloram os sentimentos de medo e de esperança nos corações das nossas gentes neste momento tenso de pandemia, ouvi, também, a opinião da Elizângela da Silva Costa, índia da etnia Baré, falante da língua nhengatu e moradora da Terra Indígena Marabitanas Cué-Cué, no município de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, próximo à fronteira trinacional Brasil-Colômbia-Venezuela. Elizângela é uma das coordenadoras do Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro (DMIRN) da FOIRN, a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro.
“Sim, temos conversado sobre o medo. Desde que vim morar na cidade para atuar como uma das coordenadoras do DMIRN, sabemos que manter a nossa cultura na cidade requer muita resistência e é mais difícil, porque toda a vida cotidiana está ligada com o mundo que não faz parte da vida indígena. Por isso o medo de sermos contaminados por esse vírus é maior para quem reside na cidade do que para quem reside nas aldeias”, diz Elisângela.
“Por outro lado, o parente que reside na aldeia, distante da cidade, terá mais dificuldade de atendimento. E a população indígena que mora na cidade corre o risco das relações que estão para além da nossa cultura. Convivemos com pessoas indígenas e não indígenas. Como conheço os dois lados, tenho plena ciência de que a nossa cidade não está preparada para essa pandemia, no hospital e na Casai [Casa de Saúde Indígena] não temos profissionais suficientes para nos atender e somos 750 comunidades, com 45 mil pessoas. Então, esse é o medo”, pondera a indígena.
Elizângela aponta, ainda, outro fator de risco que envolve os índios urbanos: “a população indígena na cidade é de jovens que não passou por epidemias de sarampo, coqueluche e outras que dizimaram muitos indígenas no passado. Por isso, eles acham que isso é uma brincadeira, o que torna difícil conscientizar essa geração. Mas quem passou por uma epidemia sente muito medo e preocupação”.
“Na minha família, a nossa proteção está sendo feita em coletivo, com defumação, banhos e remédios caseiros. Já nascemos com o dom do coletivo, a nossa ambição é de estarmos ligados com a natureza. Lua, rio, Terra, Sol, animais. Os nossos ancestrais são dos universos que são inexplicáveis para o mundo branco. Nascemos dos rios, das montanhas, da lua, da cobra, entre outros. Isso faz com que esses seres sejam nossos guardiões e nossas guardiãs da natureza. Não é por acaso que dizemos ‘Terra é a nossa Mãe’, ‘meu Clã é Suicí’, ‘sou SUICÍ TAPUWA‘. Cada um de nós conhece as nossas origens e raízes”, explica ainda.
Elizângela também acha que o mundo não vai acabar. “Mas como diz o meu pai, as montanhas, as pedras, as areias, as árvores, os rios, tudo é apenas modificado pela ação humana. Quem pode acabar são os seres humanos, porque são eles que estão morrendo e, com eles, os conhecimentos também estão indo. Sejam indígenas ou não, o conhecimento humano morre quando alguém vai embora dessa Terra, com vírus ou não. Vivemos, hoje, uma guerra invisível provocada pelos governos que não se importam com vidas, não querem saber se esse vírus vai acabar com os seres humanos. A economia prevalece em primeiro lugar, pois os humanos da burguesia não querem deixar as suas ambições e lutar por um mundo mais igualitário”.
Elizângela vive a transição entre dois mundos – o da aldeia e o da cidade – e entre dois tempos – o antes e o depois da epidemia. Sua estratégia é de resistência cultural, tanto para enfrentar e vencer o medo, quanto para cultivar a esperança e construir o futuro. Mas eu acho que, para ela, mais do que para as mulheres xinguanas, a cidade é a incógnita e o limite.
A crise pandêmica só agora se acelera no Brasil e está apenas chegando às aldeias e regiões mais remotas. Quando da escritura deste texto, contavam-se sete mortes de índios por Covid-19 no país. O número já deve ser maior. Nas cidades e nos sertões, muitos ainda subestimam o vírus ou não têm meios para melhor se protegerem dele. A situação ainda vai se agravar, e muito.
Sobre o que esperar para o futuro, Elizângela também se ancora nas tradições: “sempre estivemos lutando pelo coletivo, pela cultura, pelo território, pelo direito de sonhar com um mundo solidário. A nossa luta sempre foi por igualdade, respeito e paz. Como povos originários, não vamos deixar os conhecimentos dos nossos ancestrais esquecidos, vamos lutar até o fim para que a nova geração possa contar as nossas histórias para os nossos tataranetos, para que a nossa descendência possa lembrar de nós como guerreiros e guerreiras que lutamos para salvar vidas. Como mulher indígena, ensino aos nossos filhos os conhecimentos da sua ancestralidade, para que o espírito da nossa família possa sobreviver para além do universo, como uma estrela que brilha”.
Daí que o momento objetivo é de prevalência do medo e, talvez, ainda seja um pouco cedo para sacar traduções mais claras de esperança, em diferentes corações. Mas vale o registro feito aqui, de que ela está viva em toda parte, ao enfrentar o medo presente e ao germinar o momento seguinte.