Ao buscar o termo “infusão” no dicionário, uma das definições se revela como o processo de mergulhar em água fervente qualquer substância para extrair dela princípios medicamentosos. Rael não poderia ter sido mais certeiro ao escolher o nome do seu novo EP: Capim-Cidreira (Infusão). No trabalho, o cantor e compositor soma músicas do seu disco mais recente, Capim-Cidreira (2019), a faixas da sua carreira que têm a positividade como fio condutor, além de apresentar a música inédita “Rei do Luau”, uma parceria do rapper com a cantora IZA.

Quando o período de quarentena começou, Rael se viu impossibilitado de rodar o país com o show do disco Capim-Cidreira. Como ele tem um estúdio em casa, pensou em produzir algo novo – até mesmo como um meio de se manter em equilíbrio no momento em que as suas rotineiras corridas no Parque do Ibirapuera foram suspensas (ele estava se preparando para correr a meia maratona de São Paulo). Mas uma movimentação entre os seus fãs chamou a atenção dele. “Percebi que as pessoas começaram a compartilhar algumas músicas antigas, como ‘Semana’ e ‘Tudo Vai Passar’. Músicas com letras que trazem algum tipo de conforto”, lembra o artista. Foi então que ele decidiu fazer um EP com versões “no ritmo do desacelero”. A produção ficou por conta de Julio Fejuca.

Saído da quebrada paulista, o músico confessa que questões políticas não foram alheias à produção do disco. Na visão de Rael, a música tem um poder enorme de incentivar as pessoas a ver os caminhos de saída, a projetar esperança no futuro. Capim-Cidreira (Infusão) teve o propósito de ajudar a superar os desafios impostos pela pandemia. 

Porém, em um contexto convulsionado pelo assassinato de George Floyd a mãos de um polícia de Minneapolis, que mostrou o desprezo institucional que existe diante dos corpos negros, Rael decidiu que era momento de se somar ao sentimento de revolta e protesto de toda a comunidade e deixar o lançamento do disco para depois. Lugar do artista é na luta, como ele mesmo fala, e quem luta é obrigado a fazer alguns sacrifícios. 

Em entrevista, o músico conta como foi o processo de produção do disco “Capim-Cidreira (Infusão)” e as decisões políticas que o levaram a produzir e logo adiar o lançamento do disco. 

Você aderiu  ao movimento “The Show must be paused” (O show precisa parar), um movimento que nasceu nos Estados Unidos que pretende chamar atenção sobre a morte de George Floyd e a violência institucional contra a população negra. Por causa disso, adiou o lançamento de “Capim-Cidreira” (Infusão). Por que tomou essa decisão? E finalmente, se sente conforme com tê-lo feito?

Eu já estava meio mexido com a pandemia, foi uma mudança muito brusca pra todo mundo e também porque a minha mãe tem 80 anos, está numa cadeira de rodas e fiquei naquela noia. Aí, veio o caso do menino João Pedro e eu fiquei puto. Logo, em seguida o George Floyd e toda aquela movimentação de ir pras ruas… Juntou tudo. Então falei com o pessoal do Laboratório Fantasma, que é quem lança os meus trabalhos e cuida da minha carreira, e falei: “paramos”. O mundo tava um barato louco e não tava sentindo conexão nenhuma pra colocar um trabalho na rua. Era hora de refletir e tentar fazer alguma coisa para além da música.

Naquele momento, nada era mais importante do que essa luta e demonstrar indignação com essa estrutura racista. Claro que de lá pra cá, essa luta não mudou. Os pretos estão em pauta, mas não tão em alta. Já tivemos baixa de novo depois disso. O jovem Guilherme, de 15 anos, foi morto pelas mãos da polícia, por exemplo. Aí, pensei que, se mesmo no meio da pandemia os caras arranjam tempo pra matar pessoas, porque eu, que tô falando de amor e tô tentando salvar as pessoas por meio da minha arte, vou tirar folga? O Bob Marley falava algo parecido com isso.

Esse ano houve vários casos de violência e abuso policial aqui no Brasil. Você sente que a situação vem piorando nos últimos anos?

Eu vim de quebrada e já vi cada coisa… o abuso e a violência policial nunca diminuíram. Como pode existir uma instituição que devia passar segurança, mas nos dá medo? É só ver as notícias, os números. Dos últimos 22 anos, 2020 foi o ano que a polícia do Rio de Janeiro mais matou gente. É uma máquina velha e empoeirada de matar preto e pobre. E o mais triste é que a gente naturalizou isso. A morte do João Pedro não causa choque na sociedade. Se tivesse acontecido isso em um bairro nobre, ia tá uma movimentação brava. Quando eu comecei a fazer rap, o abuso policial já era um assunto. E a gente segue na mesma. 

Você anunciou o adiamento do lançamento do disco com um vídeo nas redes sociais onde manifestava sua preocupação de como coronavírus estava se espalhando e já tinha chegado na cidade onde mora sua mãe. Como está essa situação hoje?

A situação continua preocupante e até por isso que não posso parar. A gente faz música preta e urbana no Brasil. Eu moro mais perto do centro, meu irmão tá lá com ela. Ele monitora quem sai, quem entra… Os números de morte não param de crescer e a gente fica preocupado. Ao mesmo tempo, a gente entende que a frase “fica em casa” não funciona pra todo mundo. Na quebrada, se isolar, é difícil pra caralho. É um barraquinho com quatro, seis pessoas morando. É aí que entram os movimentos de auxílio. Tem rolado bastante isso na quebrada.  

Os pretos estão em pauta, mas não tão em alta. O jovem Guilherme, de 15 anos, foi morto pelas mãos da polícia, por exemplo.

Em uma entrevista de 2016 você falou que se sentia otimista sobre como as pessoas valorizavam os artistas. Disse que sentia que os artistas finalmente estavam sendo valorizados. Sente que isso mudou nos últimos anos? Qual é o lugar do artista hoje no ano 2020 na sociedade brasileira?  

Nosso lugar, o lugar do artista é na luta. Sempre foi. A gente nunca teve a cultura como algo fundamental no país. Claro que isso piorou de uns anos pra cá. Em 2016, a gente falava de uma realidade em que existia uma instituição que olhava um pouco mais pra isso. Era um momento em que a minha carreira estava em ascensão, vinha depois do lançamento de “Envolvidão” (2014), música que me apresentou pra um público maior. Eu encontrava os outros artistas no aeroporto, todo mundo em turnê, todo mundo viajando. Depois do golpe, foi só ladeira abaixo. Agora, estamos na fase do Sem Cultura, não gosto nem de falar o nome dele. 

Capim-Cidreira (Infusão) foi produzido no período de quarentena, no estúdio que você tem na sua própria casa. Qual a diferença de produzir um disco na intimidade de casa com a de fazê-lo num estúdio externo com colegas de profissão?

O disco do ano passado foi o primeiro que gravei em casa. Mas fiz ele em meio a turnê, a muito trabalho, eu vivia na rua, então não me sentia muito bem por estar produzindo dentro de casa. Agora, tenho uma outra relação. Uma relação de aconchego, tenho curtido ficar no estúdio, explorar as minhas ideias, ter um laboratório para ficar experimentando. E o “Capim-Cidreira (Infusão)” é resultado desse “desacelero”, que nem todo mundo tem a oportunidade de ter. Sinto a falta de chamar um músico pra gravar o baixo, alguém pra gravar outro instrumento. Eu fiz esse disco daqui e o Julio Fejuca produziu à distância.

Quanto serviu esse processo de produção e criação para superar a quarentena?

Eu lancei “Capim-Cidreira” no segundo semestre de 2019 e não deu tempo de explorar ele direito, fazer show dele em vários lugares, por causa da pandemia Ao mesmo tempo que a quarentena brecou isso, serviu pra eu pensar em alguns modelos e processos. E “Capim-Cidreira (Infusão)” foi o jeito que encontrei de manter o trabalho vivo. No ano passado, a gravadora comentou comigo que tinha dificuldade de encaixar minha música nas playlists das plataformas de streaming, porque não identificavam muito bem o que era. Eu fiquei feliz por um lado, porque é sinal que estou fazendo algo que não se encaixa em caixinhas. Mas eu quero falar com o máximo de pessoas. O brasileiro ama violão e voz, então pensei nesse formato para que entendam melhor a minha música e para que eu possa apresentar com mais facilidade o afrofusion que eu tanto falo, o afrobeat do Fela Kuti, da beleza preta da Bahia… Além disso, o violão e voz tem uma sonoridade que acalma e acho que é disso que estamos precisando agora: do ritmo do desacelero.

Numa postagem antiga, você conta que sua avó benzedeira era quem fazia para você o chá de “Capim-Cidreira”, para você se acalmar. Sente que o disco tem um propósito similar? Fazer a gente se acalmar um pouco de tudo o que está acontecendo no país e no mundo?

A mãe da minha mãe era benzedeira, a nossa casa vivia cheia de gente. Buscavam as ervas, tinha uma mistura de catolicismo com as religiões de matriz africana. E ela servia esse chá de cidreira quando eu era criança, justamente pra dar aquela acalmada. Eu queria trazer essa proposta na música também. No ano passado, passei por um período de depressão e a música me ajudou muito, assim como correr e praticar exercícios físicos. Então acredito na música como um elemento capaz de beneficiar as pessoas em um período como atual. Mas também acho importante frisar que quando falo de calma não é no sentido de esquecer tudo o que está acontecendo. Todas essas manifestações recentes são importantes. Mas também precisa de calma pra pensar em estratégias. Como podemos agir de forma mais efetiva? Às vezes, fica tudo muito na internet só e num pode parar nisso. Não pode ficar só em postar a imagem preta no Instagram. E na vida real? A representatividade tá acontecendo de verdade? A mudança tá acontecendo de verdade?

Mohamed Alí disse, após voltar de uma viagem à África, que aquela experiência o tinha feito descobrir coisas no interior dele que ele mesmo desconhecia. Como foi a experiência da sua viagem para África, que teve ainda como consequência a produção do vídeo clipe “Flor de Aruanda”? 

É magnífico poder conhecer a cultura, a dança, a música… Fiz muita coisa de imprensa, então conheci outras paradas sobre o Afro House, Kuduro, Afro-fusion, o Afro trap… tem muita coisa rolando lá. E também remete à história do Brasil. Eu fiquei hospedado num hotel ao lado do Porto de Luanda, era de lá que saíam os escravos, então essa história triste vem junto, além de ter notado as desigualdades extremas. Uma coisa que me chocou foi a presença da religião lá, é muito forte. Estou dizendo das igrejas pentecostais e evangélicas mesmo. Eu me deparei no meio de uma avenida lotada, só gente preta, e tinha um outdoor com a imagem de Jesus Cristo, mas que, na verdade, era um ator brasileiro de uma novela da Record. Aí eu pensei: “Como é que eles não tão vendo isso?”. É bem triste. Mas eu não tive experiência só em Luand.

Fui pra Níger, na Tanzânia; pra África do Sul, pro Zimbabue… Cada lugar foi uma experiência diferente de acordo com a colonização. Mas a parte cultural realmente é uma reconexão. Você vê que essa parada da música, essa batucada, do jeito de ser tem muito a ver com a gente que é preto. Essa coisa do sorriso, de ser engraçado, de dançar… Tem muito essa parada da África que muito tem no brasileiro também. Acredito que tem muito essa parte africana, que é a parte boa. Antes de ir, você pensa que vai se reconectar, se ligar com a sua ancestralidade, mas você percebe que tá tudo mudado, porque eles também foram colonizados. Às vezes, a gente romantiza, fala: “África, roots, Wakanda”. Mas não é em todo lugar, não é bem assim…

A Faixa “Rei do Luau” escrita em parceria com a IZA diz “Você sabe que o amor pode salvar, você sabe que o amor pode curar”. Acredita mesmo nesse poder decisivo e transformador do amor?

Sem dúvida acredito que o amor pode curar, que o amor pode salvar. A palavra “amor”, nos dias de hoje, ficou romantizada, como se fosse possível apenas o amor a dois, de uma relação. Eu digo amor no 360. Amor de você se colocar no lugar do outro, da empatia… No caso do João Pedro, por exemplo, tem todo o lance do racismo estrutural, mas, antes de tudo, é falta de amor. As pessoas têm que se colocar no lugar do outro, falar “isso não pode acontecer, o garoto tava na casa dele, isso tem que parar”. Essa mobilização não acontece por falta de amor.

Como foi trabalhar com a IZA?

Foi maravilhoso. A gente tinha essa ideia de fazer alguma coisa junto há algum tempo. Começou a quarentena e ela me mandou uma mensagem no whatsapp pra falar de outra coisa. Eu estava trabalhando nessa música, aproveitei pra convidar e rolou. Foi fácil fazer a parceria com ela, a gente se entende. Eu admiro a IZA como mulher, como artista, como preta, nos posicionamentos… Em “Rei do Luau”, eu vinha mais em uma linha samba rock, colocando rimas em cima de música brasileira e a IZA trouxe o lado R&B pra música. Ela quebrou tudo!

O disco inclui a faixa “Tudo Vai Passar”. Parece que com o começo da pandemia seus seguidores começaram a compartilhar essa música mais do que antes. Essa música tem uma mensagem de esperança. O Coronavírus e grande parte dos problemas que nos assolam hoje com certeza vão passar. O que você acha que vai ficar? Acha que as pessoas vão valorizar mais a vida após essa crise social e de saúde?

Nesse momento, todo mundo deu um passo pra trás. O Brasil e o mundo se demonstraram com um sistema de saúde frágil. Acho que as pessoas vão repensar o universo. Fico na dúvida se elas vão valorizar mais a vida, porque, pra isso, têm que valorizar a vida do outro também. Esse vírus fez a gente ficar em casa e mostrou que todos estamos fodidos. Hoje, eu valorizo muito os rolês que eu dava no Jd. Ipiranga quando eu ia visitar a minha mãe. Acho que vamos valorizar as coisas simples, como abraçar, correr em um lugar com vista da hora, andar sem pensar em álcool gel e máscara…

 

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