O histórico preconceito de classe no mundo intelectual acadêmico
No título de um artigo recentemente publicado no “El País Brasil” chamado “Sapiosexuais: quando você só se excita com a inteligência”, se percebe às claras a frivolidade e o preconceito de classe, históricos de certo tipo de intelectualidade acadêmica.
No título de um artigo recentemente publicado no “El País Brasil” chamado “Sapiosexuais: quando você só se excita com a inteligência”, se percebe às claras a frivolidade e o preconceito de classe, históricos de certo tipo de intelectualidade acadêmica. Nele, o autor (que não importa aqui porque estamos falando de um todo, de uma elite social que às vezes até se disfarça de intelectualidade progressista) se refere a observações de um psicólogo euro-estadunidense (quando não a academia olhando para o norte) chamado John Money (que na tradução seria “João Dinheiro”). Para o psicólogo citado, temos tendência a sentir desejo por uma “representação complexa do nosso amante idealizado”, até aí, nada demais, uma análise bastante básica de como funciona a psique humana. O problema radica nas várias passagens do artigo em que quem escreveu o texto associa inteligência às conquistas acadêmicas.
“com quem você preferiria dormir uma noite: com alguém de alto QI ou com alguém com corpo e físico invejáveis? Não temos muita certeza de que a maioria escolheria os neurônios. É provável que muitos ficassem com os hormônios ou feromônios. Na melhor das hipóteses, haverá tempo no dia seguinte para ler Byung-Chul Han”
Bom, só nesse trecho temos uma longa lista de preconceitos que excluiriam pessoas com físico desenvolvido (como, por exemplo, professores de educação física) de serem inteligentes. Por outro lado, o trecho insinua que a leitura de Byung-Chul Han seria um sinônimo de inteligência, o que, claro está, exclui de fato a todos aqueles que não poderiam sequer se aproximar a priori da obra do autor Koreano-Alemão por carecer do domínio necessário da obra de autores como Nietzsche e Foucault, por citar só alguns que você conhece dentro de círculos intelectuais específicos e pouco acessíveis.
Outro preconceito bastante comum dentro da intelectualidade é a associação de leituras dentro da área da sociologia, filosofia, enfim, humanas, a uma espécie de patamar superior de conhecimento. Como se quem se dedica à especialização em geografia, ou engenharia mecânica não estivesse consumindo a mesma qualidade de saber esclarecedor. Como se não soubéssemos que a engenharia da sociedade humana (e quem escreve é de humanas) não tem evoluído em nada, considerando a atualidade política do Brasil, mesmo com um acúmulo gigante de autores que já debateram até o cansaço sobre problemáticas sociais. Se evoluímos, se deve às lutas sociais que acompanham os saberes concebidos. Evoluímos quando nossa sociedade se vê impossibilitada de ignorar pautas que se tornam grosseiras de necessárias aos olhos de qualquer pessoa que assiste a realidade que a circunda.
Outra coisa que tem que ser dita é que a inteligência não está vinculada aos logros acadêmicos, ou a ter tendência à leitura, ou assistir a filmes chamados “de culto”. Inteligência é a capacidade e velocidade em resolver situações complexas de forma espontânea (como, por exemplo, fazer uma piada, um exercício espontâneo do intelecto). Inteligência também é sua capacidade de se enxergar a si mesmo, de controlar suas emoções. Inteligência é como você resolve o mundo assim como lhe foi dado. Se você quer ter um corpo de atleta e consegue, você foi inteligente, tanto quanto um escritor nascido em berço de ouro que cita Foucault e utiliza termos acadêmicos para falar durante a ceia do natal. E não estou dizendo que não pode citar Foucault no natal, estou dizendo que usar termos foucaultianos para intimidar a intelectualidade do outro não passa de ser um mau caráter. Inteligência também é reconhecer o contexto em que você está, enxergar as dificuldades e driblá-las.
Admirar e desejar alguém pelos seus logros acadêmicos, pelas suas conquistas artísticas, pelos prêmios que ganhou em tal o qual festival ou certame, não difere muito daqueles que se excitam com o acúmulo de dinheiro, fama, ou poder. No caso, vem a ser a mesma coisa. Isso se chama ser interesseiro e ter preconceito de classe, e pouco tem a ver com sapiosexualidade ou qualquer outro termo da psicanálise. O fato da elite intelectual acadêmica ser a classe social que determina e produz as verdades em uma sociedade determinada não significa que ela esteja em um nível espiritual superior, e que a lógica de “te admiro porque você leu e cita Chomsky” signifique que você é uma pessoa mais esclarecida que aquela que admira alguém porque tem um carrão Camaro ou um apartamento frente ao mar.
Um garçom pode ser uma pessoa muito inteligente, talvez até mais inteligente, mais ágil de intelecto que quem escreveu o artigo no El País, a diferença está nas oportunidades que tiveram ambos. Se o garçom tem menos livros lidos, com certeza tem muito a ver com sua formação, sua criação e seu lugar num mundo capitalista que mercantiliza o conhecimento. Ter lido mais livros, ter assistido mais filmes não faz você mais inteligente, em todo caso você tem uma estrutura cognitiva melhor desenvolvida, o que também tem a ver com sua classe social. Assumir essa barbárie do nosso sistema (que faz que quem escreve essas linhas também não seja uma pessoa necessariamente mais inteligente que quem as ignora) é muito importante. Definir inteligência não me faz mais inteligente, sabe? No máximo me colocaria talvez em um lugar de privilégio sobre aquele que vai servir meu próximo café, ou o seu, não sabemos, porém, que talvez tenha mais direito a falar do que eu, com mais inteligência emocional, com outras palavras e desde outra perspectiva. Sim, sabemos que essa pessoa excluída não está habilitada para falar, não entrou no cânon de intelectual, de pensador ou coisa parecida. Essa pessoa é um ser invisibilizado, é as linhas em branco que seguem esses últimos caracteres, em uma sociedade que tem donos das terras, das fábricas, mas também tem donos do saber e da moral comum.