O golpe contra Evo Morales e os riscos do personalismo
Por mais que a mídia imperialista manobre para descrever os acontecidos deste domingo sem falar em golpe nem revolução, a Bolívia sofreu um golpe de Estado. A direita não quis saber de dar uma segunda chance à democracia e forçou a resignação do presidente.
Por mais que a mídia imperialista manobre para descrever os acontecidos deste domingo sem falar em golpe nem revolução, a Bolívia sofreu um golpe de Estado. Num gesto conciliador desesperado, o presidente Evo Morales até tentou manter o pacto democrático, convocando novas eleições, apesar da inconsistência das acusações de fraude que a oposição fez pesar sobre o pleito de outubro. Mas a direita não quis saber de dar uma segunda chance à democracia e forçou a resignação do presidente.
O golpe foi racista, misógino, violento, como era de se esperar. Mas qual atitude da direita não é? Evo, à frente de uma nação que no último século contou golpes às centenas, obviamente sabia o que se arquitetava pelo menos desde seu fracasso no referendo da reeleição. Quiçá antes. E talvez isso explique sua tolerância com uma figura da baixeza de Jair Bolsonaro.
Evo sabia que as oligarquias nacionais, entrincheiradas no sistema financeiro e na mídia corporativa, detestavam tudo nele, da cor da pele à história sindical cocalera, passando pelo desenvolvimentismo plurinacional e pela política de recuperação da soberania econômica. E a esquerda na América Latina sabe a direita que tem. Diante deste enorme revés, a destituição da última gestão social do continente, precisamos nos preocupar em entender como enfrentar essa direita, não como mudá-la, civilizá-la. Ela está estabelecida há 500 anos e, com uma ou outra adaptação conjuntural, mantém mais ou menos o mesmo caráter escravista, colonialista, patriarcal.
Só de ontem para hoje, eles destruíram as bandeiras whipala nos prédios públicos, em gesto abertamente racista; enviaram milícias para ameaçar dirigentes do MAS (Movimento ao Socialismo, partido de Evo), queimaram os comitês populares e as casas de dirigentes partidários… Vale tudo para que nada mude.
Enquanto nossa missão é inventar uma nova sociedade, uma nova economia, uma nova distribuição de poder, eles têm pauta única: a manutenção do status quo. De Bolsonaro a Hillary Clinton, o projeto deles é zelar pela desigualdade. Que o pobre siga pobre, que o rico siga rico, que o oprimido siga oprimido, que o opressor siga opressor. Já que a preocupação deles é com uma pequena elite e o fim, pré-definido, tanto faz o meio. Vale golpe de Estado, tortura, lawfare, vale tudo. Nós sofremos de uma deficiência objetiva: como nossa única certeza utópica é a necessidade de mudar tudo, o caminho determina o destino.
Parece-me que a falta de fim tangível nos tem feito tropeçar no caminho. E há padrões de tropeço. Talvez o mais evidente que se possa depreender do caso Evo seja o mesmo que traiu o chavismo venezuelano ou o castrismo em Cuba: o excesso de personalismo. (Com a diferença que estes dois últimos conseguiram assegurar o controle das Forças Armadas). Temos um problema grave quando nossa esperança política e nosso projeto de futuro se concentram num indivíduo. Cortada a cabeça, o corpo deixa de funcionar.
Que fique claro que não estou discutindo se Evo tinha ou não condições de ir além – ele foi certamente um dos líderes latino-americanos que mais radicalizaram a democracia. Evo construiu um movimento popular vultuoso, outorgou poderes e instrumentos de participação inéditos à maioria indígena. Chegou mesmo a incluir a natureza como sujeito de direitos constitucionais. Ou seja, ele distribuiu a capacidade de incidência no Estado às vítimas desse mesmo Estado. Mas não foi capaz de distribuir o Estado, de fato dissolver o poder para possibilitar uma soberania popular capaz de frear a sana golpista das oligarquias tradicionais.
No exercício do poder, Evo reduziu a inequidade e potencializou a justiça, mas, talvez por falta de condições objetivas, não aboliu as elites. E essa tem de ser nossa função, uma vez que voltemos a alcançar o poder: acabar com os mecanismos de reprodução das elites, do sistema tributário anti-distributivo à escola particular, que segrega na primeira infância. Do monopólio midiático à segregação espacial nos centros urbanos.
Distribuição é o oposto de concentração. E se nossas lideranças concentram poder, nosso jogo é, intrinsecamente, um jogo de reprodução de elites. Se não formos capazes de pulverizar o poder – não só criar sucessores eleitorais, mas transformar todo excluído em um sucessor potencial – seguiremos alimentando a mesma fogueira da direita. Nem estou criticando Evo Morales por ter “se perpetuado no poder”, porque essa não é uma crítica válida: um projeto popular só pode se perpetuar no poder se eliminar a barreira da representação e outorgar o poder diretamente ao povo. Esse deveria ser nosso horizonte. Enquanto pertencer a um representante, mesmo que seja do povo, o poder sempre será um meio de reprodução de elites. E elite por elite, a deles tende a triunfar porque não tem amarras éticas, como este e todos os outros golpes demonstraram.