O direito a um delírio trans
Nesse 2022 arrasado por dois anos de pandemia resolvi me permitir o delírio trans de sonhar. Leia coluna de Bernardo Gonzales neste dia da visibilidade trans.
Fiquei pensando muito sobre o que escrever no dia da visibilidade trans (29 de janeiro). É uma data no calendário do ativismo trans e travesti importantíssima porque as estatísticas sobre a violência de desumanidade a que são submetidos nossos corpos não mudam. Mas nesse 2022 arrasado por dois anos de pandemia resolvi me permitir o delírio trans de sonhar e me juntarei no final desse delírio com as palavras de esperança de Eduardo Galeano que vivem dentro de mim.
Não existirá cor de menina nem cor de menino, nem chá de bebê revelação porque a comunidade que está à espera desse bebê entende que expectativas sobre um bebê são grandes e frágeis para serem sustentadas por toda uma vida.
As famílias que querem cuidar e gerir crianças e adolescentes não acreditarão que precisarão impor suas verdades sobre elas. Nem as obrigarão a nada a não ser que busquem a alegria de serem quem quiserem ser.
Nenhuma criança, independente ou não de saber sobre si e seus desejos, será orientada pela violência da binaridade de gênero das pessoas adultas, porque as adultas entenderão que falhas como essas de geração em geração são todas, sem exceção, evitáveis.
Nenhuma criança esconderá o que faz ou o que é por medo da violência, porque não haverá nenhum problema em ser só o que se é, inclusive o direito constitucional e humano pra ser hoje algo diferente do que será amanhã.
As escolas ensinarão que existe espaço para todas as pessoas, os bichos domésticos que aparecerem nos entornos e quem sabe até as bicas de água pras crianças e adolescentes se divertirem no recreio. A polícia de gênero não será a maldição de quem não quer se submeter a ela.
Nenhuma pessoa trans crescerá traumatizada com seu corpo ou disfórica, porque não haverá disforia em nenhum lugar a não ser museus de um tempo estranho que vivíamos a fiscalizar corpos alheios.
Nenhuma pessoa que escreve livros infanto juvenis se sentirá no direito de dizer quem é o que, porque essas autoras e autores simplesmente não existirão.
Nossa sociedade se orientará aos relacionamentos sexo afetivos não pelas genitálias ou pelo gênero, mas pela relação de cumplicidade, amor e carinho que são estabelecidas durante a relação e, que essas três categorias sejam eternas enquanto durarem essas relações.
Nenhuma mulher trans ou travesti terá seu coração arrancado do peito, porque não existirá ninguém que entenda que têm esse direito.
Nenhuma pessoa transmasculina ou homem trans será criminalizado depois de morrer sob a estúpida justificativa de falsidade ideológica, porque falso será mesmo só quem acha que tem autoridade pra desdizer uma vida toda vivida sendo quem se era!
A igreja e todas as religiões farão um acordo internacional de que nenhuma delas servirá ao propósito de humilhar pessoas trans e travestis nem ninguém, por nenhum motivo que seja, menos ainda aquelas pessoas que decidiram viver sem elas.
Na medicina pessoas trans e travestis não serão fichadas como “doentes mentais”, e as infinitas possibilidades de ser quem se é não impedirá ninguém de ser cuidada, porque afinal, todas as pessoas dedicadas à medicina saberão que corpo é corpo e que as demandas são diferentes sempre, mas todas possíveis de serem tratadas. A prioridade será a saúde daquele corpo, mais do que ele pertencer a esse ou aquele gênero.
As pessoas trans estarão no mercado de trabalho formal ou informal ou onde quer que seja, por escolha e não porque serão submetidas a esse ou aquele emprego para viver. Elas trabalharão como todas as outras e não serão tratadas como exceção.
Não existirão vaquinhas para nenhum tipo de cirurgia, porque elas serão feitas a partir da escolha consciente da pessoa e por um sistema público de saúde bem estruturado de ponta a ponta em qualquer lugar do mundo.
A expectativa de vida de uma pessoas trans será o quanto ela conseguir viver e não um número com o qual devemos nos preocupar e medir ano a ano.
Nenhum juiz de direito sentirá que pode decidir se uma pessoa pode ou não mudar seu registro civil de nascimento, porque esse assunto será em primeira instância de quem quer a mudança e em segunda instância da comunidade a que pertence, sendo a segunda facultativa.
As pessoas trans viverão sem precisar o tempo todo se explicar e ou se justificar por serem quem são, porque não haverá perguntas desse tipo nem nenhuma curiosidade.
“Seremos compatriotas e contemporâneas de todas as pessoas que tenham a vontade de justiça. Tenham nascido quando tenham nascido. Tenham vivido onde tenham vivido, sem importar nenhum pouquinho as fronteiras do mapa ou do tempo.
Seremos todas pessoas imperfeitas, e nesse mundo atrapalhado seremos capazes de viver cada dia como se fosse o primeiro e cada noite como se fosse a última sem precisar violar ou violentar a dignidade ou humanidade de nenhum grupo ou pessoa.”