O dia seguinte do golpe
Não sei onde estava o general Fernando em 1 de abril de 1964, mas os tempos eram outros. A crise de então se aprofundava desde o auto-golpe tentado por Jânio Quadros e que o levou à renúncia em agosto de 61. João Goulart era o vice eleito por outra chapa, o que era possível pela legislação eleitoral vigente, e não tinha maioria no Congresso.
O filho do presidente e deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), pronunciou uma frase célebre para caracterizar o seu desprezo pelo Judiciário: “se quiser fechar o STF, manda um soldado e um cabo”. Eduardo exagerou. O STF tem um punhado de seguranças, além de muitas portas a fechar considerando os edifícios anexos e garagens. Mas seria possível fazê-lo com contingente pouco maior.
Mais recentemente, Eduardo nos informou que “o momento é de ruptura”, já que o STF e o Congresso Nacional insistem em barrar atos ilegais e totalitários do seu pai, Jair Bolsonaro. Segundo ele, “a questão não é de ‘se’, mas, sim, de ‘quando’ isto vai ocorrer”. Ele quer nos dizer que o auto-golpe – desobediência às decisões dos demais poderes – só não ocorreu porque o apoio militar não foi suficiente, mas está sendo buscado através de provocações diárias do presidente e de seus ministros a diversos oponentes.
Atendendo demanda da OAB, o ministro Luís Fux, do STF, entendeu que o artigo 142 da Constituição não atribui às Forças Armadas “poder moderador” nas relações entre os poderes constituídos e que cabe ao STF a interpretação do texto constitucional e a decisão em última instância a esse respeito. A posição do Fux ainda será analisada pelos demais ministros.
Se quisesse, o presidente poderia orientar o advogado geral da União para manifestar-se nos autos, mas preferiu emitir uma nota política e ameaçadora. A nota diz obviedades e dá indiretas ao Fux, mas atravessa o sinal ao afirmar: “As FFAAs do Brasil não cumprem ordens absurdas, como p. ex. a tomada de Poder. Também não aceitam tentativas de tomada de Poder por outro Poder da República, ao arrepio das Leis, ou por conta de julgamentos políticos”.
Tudo parece mais ou menos óbvio até “ou por conta de julgamentos políticos”. A nota presidencial parece pretender antecipar-se à decisão do STF para impor uma interpretação própria da Constituição. Partindo de quem participou de dois processos de impeachment, trata-se de uma desonesta aberração.
O mais grave da nota é que ela vem assinada pelo vice-presidente, “gen” Hamilton Mourão e pelo ministro da Defesa, general Fernando Azevedo. É claro que a iniciativa da nota foi do presidente, paranoico com a pilha de pedidos de abertura de processos de impeachment sobre a mesa do presidente da Câmara, além das investigações em curso no próprio STF. Mas são ações que começam a ser julgadas pelo TSE, pelo uso ilegal de fake news na campanha eleitoral, que ameaçam o mandato e aproximam Mourão da postura de insubordinação à Justiça.
É inconcebível que o ministro da Defesa subscreva uma manifestação política voluntariosa e que se atribua a competência de interpretar a Constituição e de interferir num julgamento em curso no STF. Mesmo instado pelo presidente, caberia ao general esclarecer o óbvio, mas ele preferiu aderir ao absurdo: à sinalização ditatorial do presidente. O general reincidiu, pois já havia acompanhado o presidente num estranho sobrevôo de helicóptero a uma manifestação golpista, alegando razões de segurança. Deve ter, pelo menos, notado lá de cima o quanto já se esvaiu o apoio popular ao presidente.
Não sei onde estava o general Fernando em 1 de abril de 1964, mas os tempos eram outros. A crise de então se aprofundava desde o auto-golpe tentado por Jânio Quadros e que o levou à renúncia em agosto de 61. João Goulart era o vice eleito por outra chapa, o que era possível pela legislação eleitoral vigente, e não tinha maioria no Congresso. Havia um atabalhoado movimento sindical que pressionava o governo pela esquerda, mas a população era muito mais rural e muito menos informada, conectada e organizada do que hoje. Num primeiro momento, o golpe teve forte apoio da mídia e da classe média.
Mais do que isso, o golpe de 64 teve o apoio dos Estados Unidos, num contexto de “guerra fria” e na esteira da revolução cubana. A política dos EUA para a América Latina, então, promovia golpes de estado e governos autoritários. A dependência do Brasil em relação aos EUA era enorme e a economia brasileira era muito menos complexa do que é hoje.
O maior problema do general Fernando não seria prover o contingente de que Eduardo Bolsonaro precisa para golpear o STF, ou o Congresso. Seria esperável, hoje, uma reação imediata das instituições atacadas e da sociedade em geral, muito mais forte. Para sustentar um governo ditatorial, a essa altura, o general teria que promover uma escalada constante da violência, em todas as direções e sentidos. Tudo isso para sustentar um ditador agressivo e psicopata, o que não tem precedente nem nos piores momentos das Forças Armadas.
Nesse momento, nem Donald Trump teria como apoiar um auto-golpe bolsonariano. Enfrentando uma dura disputa eleitoral, Trump percebeu que só Bolsonaro poderá livrá-lo da atual condição de campeão mundial de mortes por covid-19. Proibiu o acesso de brasileiros aos EUA para encenar preocupação com a contaminação de norte-americanos. Bolsonaro se acovardou e engoliu, calado.
Assim como Bolsonaro, Trump está mal avaliado quanto ao desempenho frente à pandemia. A sua retórica, de responsabilizar a China, não explica o impacto gigante que ela está provocando sobre o povo norte-americano. Bolsonaro até poderá superar Trump no ranking da morte, mas é improvável que essa caricatura seja suficiente para reverter o desgaste. Até as eleições de novembro, Trump não teria como endossar um auto-golpe bolsonariano. Estaria sob pressão para agir contra o Brasil e para descolar a sua imagem da do seu espantalho.
Com Trump no governo e sem golpe no Brasil, deputados democratas já vetaram a inclusão do Brasil no Nafta. Assim como o parlamento holandês já decidiu não ratificar o acordo comercial entre a União Européia e o Mercosul. Assim como Bolsonaro já é o maior pária planetário atual, pelo desprezo aos direitos humanos, ao meio ambiente e à saúde da população. Após um auto-golpe, Bolsonaro sujeitaria o país a inéditas sanções internacionais, com apoio até da direita europeia. Esse cenário se agravaria ainda mais no caso de vitória caso se confirme o atual favoritismo de Joe Biden nas eleições dos EUA.
O Brasil e o mundo, hoje, têm pouco a ver com 1964. A receita golpista é como areia movediça. Sendo assim, os generais que flertam com o golpismo dos Bolsonaro devem colocar nas suas contas que, numa eventual próxima vez, o dia seguinte não seria o mesmo de antes…