Mulheres do Brasil: uma história
A ocupação humana nessa terra que veio a ser chamada de Brasil vem de muito antes de Cabral e dos colonizadores europeus
Durante a pandemia de Covid, fechado em casa apenas com Silvana, minha companheira, por sugestão dela, fiz um plano de estudos para conhecer mais a fundo a história da formação do patriarcado. Em dias de reclusão, fui realizando minhas leituras e pesquisa, sobretudo a partir de literatura feminina. Com isso, histórias e referências que eu conhecia superficialmente, mesmo sendo historiador, foram se desvelando. Outras, passei a conhecer a partir daquele momento. Histórias escondidas, silenciadas, das mulheres do Brasil. São muitas!
Nessa série eu apresento apenas algumas histórias em forma de pequenos artigos, como retribuição do que fui conhecendo. Histórias de mulheres extraordinárias. Que sirvam de estímulo para o aprofundamento e novas descobertas. Cada qual daria roteiro para filmes ou séries, livros, exposições em Museus, aulas. No quinto e último artigo, escrevo sobre as origens do patriarcado. O patriarcado é a primeira de todas as opressões, foi quando surgiu a ideia de posse e exploração, primeiro dos homens sobre as mulheres. Depois, dos homens dominantes sobre os demais homens e mulheres. E dos humanos sobre os demais seres da natureza. Apesar dessa dominância, as mulheres fizeram e fazem história, conhecer essas histórias é o primeiro passo para superar a exploração e superar o patriarcado. E superar o patriarcado é libertar a humanidade. Por isso, é tarefa de todas, de todos e de todes.
Espero que apreciem as histórias. Grato!
Célio Turino
Icamiabas, mulheres guerreiras
Luzia, a ancestral mais antiga dos brasileiros e brasileiras. A mulher da Lagoa Santa, o fóssil humano mais antigo do Brasil, encontrada na gruta da Lapa Vermelha, município de Pedro Leopoldo, na região metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais. Ela morreu com idade entre 20 e 24 anos, há 12.500/13.000 anos atrás. Seu esqueleto permaneceu na caverna por milhares de anos até ser encontrado por outra mulher, a antropóloga francesa Annette Laming-Emperaire, que chefiava uma missão com pesquisadores brasileiros e franceses, no início da década de 1970.
Luzia tem muito a dizer sobre nós. Primeiro, que a ocupação humana nessa terra que veio a ser chamada de Brasil vem de muito antes de Cabral e dos colonizadores europeus. Segundo, Luzia tinha traços negroides, diferente dos traços siberianos/asiáticos dos povos indígenas contemporâneos, que chegaram depois dela. O povo da Lagoa Santa, cujo único vestígio é o esqueleto de uma mulher, habitava cavernas, não praticava a agricultura e vivia da coleta de frutos e raízes, além da caça, segue como um mistério a ser desvendado pela arqueologia.
Preservada e intocada por mais de 120 séculos em uma caverna, Luzia quase pereceu quando do incêndio do Museu Nacional na Quinta da Boa Vista, Rio de Janeiro, em 2018. Isso revela o muito do abandono e descaso com nossa memória e nossas Instituições Culturais. Felizmente o crânio e esqueleto dela puderam ser recuperados. Luzia, a primeira brasileira, nossa Mátria.
Mátria, de mulheres. Mulheres guerreiras tais quais as Icamiabas, que tinham a Lua como protetora. Foram as Icamiabas que deram designação ao rio Amazonas e à região Amazônica, por remeterem às guerreiras da mitologia grega. Icamiabas eram mulheres altas e fortes, com cabelos compridos e negros, guerreiras, negavam-se a ter maridos e só se encontravam com os homens uma vez por ano, para procriar. Se o bebê nascesse homem seria entregue ao pai, se mulher, seria criada como uma Icamiaba.
No início da colonização, no século XVI, houve grandes batalhas em que as Icamiabas enfrentaram, e venceram, os colonizadores europeus, como no atual município de Nhamundá, distante 400 quilômetros de Manaus. Mais uma dessas histórias esquecidas deste vasto Brasil do esquecimento. Na obra Macunaíma, de Mário de Andrade, a protagonista era a Icamiaba Ci, a Mãe do Mato. É ela quem entrega a Muiraquitã, um amuleto em forma de sapo, ao herói Macunaíma. A partir desse encontro os dois passam dias brincando na rede e rindo um para outro, rede tecida com os fios dos cabelos de Ci.
Muiraquitãs eram os amuletos que as Icamiabas entregavam aos guerreiros com quem desejavam se acasalar. Mulheres donas de seu destino. Amazonas brasileiras. No clássico filme Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, realizado em 1969, Ci aparece como uma guerrilheira linda e valente. Assistam ao filme e percebam a fusão entre a Icamiaba ancestral e o rosto da mulher brasileira que enfrentou a ditadura, como tantas jovens da geração de 1968. A atriz era Dina Sfat.
Icamiaba também foi Dina, o nome de uma guerrilheira morta na guerrilha do Araguaia, Dinalva Oliveira, uma lenda no Bico do Papagaio, norte do Tocantins. Diziam os caboclos que ela escapava das emboscadas militares virando borboleta. Geóloga, foi professora e parteira naquelas terras esquecidas. A única comandante de destacamento guerrilheiro no Araguaia, respeitada por sua bravura, foi uma das últimas guerrilheiras a tombar, em julho de 1974, aos 29 anos de idade. Na região, até hoje canta-se sobre ela.
“Lá havia uma mulher guerrilheira
Em torno dela a mistificação do Brasil!
De boa mulher para a população
Sua astúcia era de invejar
Sua liderança de admirar
Conquistou o povo de Xambioá
Informes sobre ela ninguém queria dar
Mas pegadas para morte ela deixou
Um preço alto a Dina pagou
Sua cabeça um dos comandos arrancou!”
Esses são trechos de uma canção militar com o título de Xambioá. Soldados a cantarem a morte e o esquartejamento de uma mulher. Dina, a Icamiaba do Araguaia, foi assassinada por um sargento do exército, que relata os últimos momentos dela, dizendo que nunca havia encontrado mulher mais valente. Levando-a para um ponto da mata, o sargento de codinome Ivan, conta sobre o diálogo com aquela Icamiaba guerrilheira:
Percebendo que iria ser executada, Dina pergunta ao sargento:
“– Vocês vão me matar agora?”
O sargento responde:
“– Não, um pouco mais adiante”
Quando param em uma clareira, ela pergunta novamente:
“– Vou morrer agora?”
“– Vai, agora você vai ter que ir.” – responde o sargento.
“– Então quero morrer de frente” – Declara Dina, sem demonstrar medo.
“– Então vira para cá” – retruca o sargento.
Enterrada na mata, o corpo de Dina jamais foi encontrado. Como Dina, outras Icamiabas guerrilheiras tombaram no Araguaia: Lúcia Maria de Souza, a Sônia, estudante de medicina; Telma Regina Cordeiro Correa, estudante de geografia; Helenira Rezende, estudante de filosofia e jogadora de basquete e atletismo (salto à distância), com várias medalhas; Áurea Eliza Valadão, estudante de física; Suely Yumiko Kanayama, estudante de Letras, com licenciatura em português, japonês e línguas germânicas; Maria Lucia Petit, professora, uma das únicas desaparecidas na Guerrilha do Araguaia a ter seu corpo encontrado, podendo ser enterrada pela família, na cidade de Bauru; Jana Moroni Barroso, estudante de biologia; Dinaelza Coqueiro, estudante de geografia; Luiza Augusta Garlippe, enfermeira; Maria Célia Correa, bancária e estudante de ciências socais; Walquíria Afonso Costa, pedagoga, foi a última guerrilheira a ser morta.
Enquanto uma parte da nova geração de mulheres dos anos 1960 afirmava seu protagonismo na luta armada contra a Ditadura Militar, outras abriam caminhos na luta comportamental. À época, o modelo exigido para as mulheres era para serem mães de família, recatadas e do lar. Mulheres desquitadas eram discriminadas, mães-solo, ainda mais. Uma cena absolutamente comum nos tempos atuais, como mulheres em torno de uma mesa de bar, apenas entre amigas, bebendo cerveja, conversando alto, era motivo de escândalo. Raras e ousadas mulheres se aventuravam a entrar sozinhas em um bar.
Se hoje a igualdade no mercado de trabalho ainda é algo distante, imagine-se naquela época. Falar de sexo em público, o tabu da virgindade, tomar pílula anticoncepcional. Ao final dos anos sessenta, apenas 5.000 mulheres tomavam pílula regularmente no Brasil. Sabemos desse número porque eram os dados da importação, talvez outro tanto chegasse via contrabando, mesmo assim em quantidade restrita.
É quando revistas femininas, como “Cláudia” e depois, no final dos anos 1970, de forma ainda mais ousada, “Nova”, tiveram papel fundamental como porta-vozes dos novos ventos que sopravam sobre a condição feminina. Também o comportamento de atrizes, cantoras e celebridades que se tornaram referência para as demais mulheres. Mulheres que não mais se sujeitavam a uma visão preconcebida do ideal feminino, a partir da fantasia dos homens. Mulheres concretas, emancipadas, donas de seu destino, ao mesmo tempo sonhadoras e profundamente pé-no-chão. Surge uma nova geração de mulheres, com cabeça aberta, lutando pela liberdade delas e das gerações futuras.
Dina Sfat, atriz de origem judaica, era um retrato da mulher brasileira que emergia a partir dos anos 1960. Ela foi a guerrilheira Icamiaba Ci, no filme Macunaíma. Consagrada no cinema e na televisão, ganhou muitos prêmios. Por sua destacada atuação, como exemplo de emancipação feminina, hoje há um Prêmio que leva o seu nomd, a homenagear atrizes com o mesmo perfil: grande intérprete, mãe dedicada, mulher engajada nas questões de seu tempo.
Diagnosticada com câncer no seio, que depois se espalhou, Dina Sfat seguiu atuando até o final de seus dias, servindo de exemplo a outras mulheres, abraçando causas públicas; a última delas, contra o câncer de mama, que a vitimou quando tinha 50 anos de idade, em 1989.
Como Dina Sfat, Leila Diniz, teve vida marcante na virada entre os anos 1960, início dos 70, foi professora, atriz, feminista. Em entrevista ao jornal O Pasquim, ela declarou:
“Em primeiro lugar; luto pela posição da mulher na sociedade. Isso quer dizer que luto por mim mesma. Em segundo lugar; luto por minha luta diária. Brigo por tanta coisa que nem sei.”
Leila Diniz abriu caminhos, divulgando valores ousados e contestadores. Ficaram famosas as fotos divulgadas na imprensa, em que ela exibia o corpo com barriga de grávida, usando biquíni, ou então, o seio desnudo amamentando a filha. Para a época, um escândalo.
Leila se mostrava inteiramente, dava entrevistas com marcante sinceridade, espontaneidade, falava de sexo, dizia palavrões em entrevistas e declarações públicas. Foi massacrada por uma sociedade hipocritamente pudica. Por entrevista dela ao jornal O Pasquim, em 1969, a Ditadura Militar justificou o aprofundamento da censura prévia à imprensa, proibindo declarações e textos que julgassem atentatórios à moral conservadora e aos “bons costumes”. Esse decreto ficou conhecido pelo nome de Leila Diniz, e ela foi perseguida pela Ditadura. Muitos “cidadãos de bem” se referiam àquela jovem linda e livre por “puta”. Devido ao seu comportamento, Leila teve ordem de prisão decretada.
Mulher atrevida, não se intimidava ao abordar livremente temas de comportamento, à época tão reprimidos entre as mulheres. Ela suportou o fardo de enfrentar as maledicências que se atribuem às mulheres espontâneas, com isso tornou o fardo mais leve às mulheres que vieram depois. Em 1972, voltando de viagem à Austrália, Leila Diniz morre em um desastre aéreo, próximo à Nova Delhi, na Índia. Ela tinha 27 anos, brigou “por tanta coisa que nem sei”.
Mulheres guerreiras brasileiras, cada uma à sua forma, abrindo caminhos, ampliando horizontes, nos chamando a seguir em frente. No próximo artigo vou escrever sobre a história das mulheres negras (apenas de algumas, porque são muitas, valorosas e valentes).
Quem quiser escutar essa história acompanhada de música poderá ouvir o podcast no canal do Instituto Casa Comum no Spotify: