Moda autoral brasileira presente!
Moda é essencialmente cultura, política, história, e futuro.
A convite, fui à Fortaleza celebrar a 20ª edição do DFB Festival – um evento sensacional, que representa a grandeza dos criadores de moda autoral brasileiros, e que hoje é considerado um dos principais eventos de moda do mundo.
Não estou falando de “artesanato” não… falo de conceito, de estilo feito à mão, de luxo, de identidade, de moda viva que carrega a nossa espontaneidade, e desperta interesse em qualquer pessoa que a conhece, em qualquer cantinho internacional.
Sabe aquilo que a gente ama? Tudo junto e misturado, do melhor jeito possível? Vi isso: instituições públicas e privadas, governo, empresários, industriais, pequenos empreendedores, estudantes, profissionais renomados, novos designers, que ofereceram, juntos, mais de 125 atividades gratuitas para o público cearense em uma estrutura inédita de 27.000 metros quadrados, instalada no aterro da Praia de Iracema, e por quê? Por que moda não é roupa.
Moda é essencialmente cultura, política, história, e futuro. E futuro não existe sem pensarmos em ações coletivas, em processos colaborativos, em integração de ideias, em diversidade de corpos, em espaços compartilhados.
Pode crer que foi lindo, e por isso trouxe aqui pra você um pouco de lá, pra reforçar que já passa da hora de nós consumidores brasileiros apoiarmos nossos criadores, consumindo e divulgando os seus trabalhos, porque sim, são preciosos, acessíveis, e bacanérrimos. Olha a prova:
Almerinda Maria é filha de mãe costureira, que saiu do sertão do Ceará pra ganhar o mundo, e já tem uma trajetória profissional de 31 anos. Seguindo a sua tradição, apresentou na passarela uma coleção inspirada no nordeste e seu precioso feito à mão, mostrando lindamente as curvas dos ventos do litoral cearense e a sua leveza em peças de organza de algodão e seda, cambraia de linho puro, gaze de seda, com aplicações e bordados em rendas renascença, labirinto, guipir, e richelieu. Sua estética é muito bem pensada, e dá à renda um reposicionamento contemporâneo, que encanta.
Gabriel Baquit lançou sua marca “Baba” durante o evento, e apresentou a sua primeira coleção “No meu Tempo”, trazendo releituras da cultura pop cearense dos anos 80, e tocou a memória afetiva do público, imprimindo antigos logos de marcas e frases icônicas locais, em peças atemporais. A marca também buscou em Bauhaus uma referência para sua estética cool.
Bruno Olly apresentou seu trabalho inspirado pelos anos 90 intitulado “O Grito“, um tema muito inteligentemente desenvolvido em cima da estética do boxe, simbolizando resistência. Ele propõe ao seu cliente que “seja quem quer ser”, e levanta bandeiras do agênero, da inclusão, da diversidade e liberdade de expressão em seus looks, numa versão contemporânea do universo pugilista.
“Cariri Visceral” foi uma coleção de 13 looks, produzida por 16 alunos dos cursos de costureiro, modelista e figurinista do Senac Crato, que trabalhou suas criações num mix precioso, inspiradas nas riquezas tradicionais do Cariri, com peças em couro de Espedito Seleiro e as tramas experimentais produzidas durante a oficina do artista-tecelão Alexandre Heberte.
Esse desfile tem uma importância histórica, pois nele foi lançada “a nova renda do Ceará”, desenvolvida pelo Alexandre, que ele chama de “Costura de fios” e explica que “é um movimento orgânico, que estrutura o tecido com um único nó, e que por não ter uma ordenação matemática é livre, o que é muito interessante porque acaba economizando tempo na sua produção”.
David Lee é um pequeno grande nome cearense já conhecido internacionalmente. Foi destaque no evento com a remontagem da instalação apresentada na temporada de moda de Londres, no início deste ano, para a qual foi convidado pelo British Fashion Council, em ação inédita orquestrada pelo Senac/CE, toda produzida em crochê com 5 cinco fios, em cores primárias – preferências que fazem parte do repertório dele desde o início.
Para a passarela, David levou a coleção “Under the sun”, fazendo referência à alma da sua marca que é solar, com a presença simbólica de estampas de girassol, propondo que as pessoas olhem pra frente.
Melk Z-da como convidado, foi de Recife à Fortaleza para apresentar uma coleção extremamente elaborada, inspirada no universo do chá. Em seu trabalho primoroso de estamparia e texturização manual, usou formas de flor de hibisco, especiarias, infusores, xícaras e bules pra contar uma história luxuosa.
Ronaldo Silvestre é um mineiro veterano no Dragão Fashion, que tem o trabalho pensado com design sustentável. Ele apresentou a coleção “A todo vapor” – inspirada no disco da Gal com esse título -, resultado de sua parceria de produção com a equipe do Instituto ITI – Instituto Tecendo Itabira, do qual é presidente, e hoje qualifica 97 pessoas com bordados e costuras, com o objetivo de atender a demanda de terceirização de empresas. Destaque para as peças construídas com estruturas artesanais, como que retecidas.
“Mar adentro” é o nome da coleção de Vitor Cunha, – um novíssimo nome de 20 anos -, fundamentada na história de quatro jangadeiros cearenses, que na década de 40 se tornaram símbolo de consciência de classe, de resistência e de um fazer político ingênuo, porém poderoso.
O designer fez uma imersão conceitual no cotidiano desses personagens, e apresentou na passarela looks simples e de vanguarda, usando óculos em MDF, bolsas com a transparência das águas, maxi-acessórios em palha de carnaúba, sandálias com amarração – todos produzidos com materiais naturais, com aplicações de 17 kg de fios trabalhados em macramês, tingidos artesanalmente, pontuando sabiamente o universo do mar e suas múltiplas simbologias, como as redes de descanso usadas por todos.
Além disso, criou toda a coleção com peças exclusivas produzidas com parceiros locais, reusou materiais e preferiu tecidos mais sustentáveis, como fibra de juta e brim. Amei as viseiras com franjados, que reverenciam o sincretismo do Adê, [espécie de adorno típico do Candomblé], que também permeia a cultura da pesca no Ceará.
No “Concurso dos novos” o tema foi “Criatividade é nossa praia”, e cada grupo participante/finalista [escolhido entre 150 instituições de ensino inscritas] produziu 8 looks completos, incluindo calçados e acessórios, de forma autoral.
Venceu, merecidamente, a equipe do Curso de tecnologia em design de moda da UTFPR – Universidade Tecnológica Federal do Paraná -, com a coleção “A terra que virou poesia”, para a qual construíram uma imagem em cima da simbologia estética existente na Ilha de Marajó, no Pará.
A tipografia da cerâmica Marajoara foi representada em tecidos de composição natural, com aplicação de bordados e cordas, aviamentos naturais do tipo sementes de açaí e madeira.
As texturas e formas de modelagem das peças, com babados e drapeados, tiveram como referência o movimento do Carimbó, que é uma junção entre as danças indígena e portuguesa. Um excelente trabalho de design contemporâneo, produzido com conceitos sustentáveis e elementos de cultura de raiz.
Vale super comentar que desse concurso participou a Universidade Veiga de Almeida, do Rio de Janeiro, que através do denimLAB, seu laboratório de pesquisas de jeans, apresentou a “Cada corpo é um rio” – uma coleção poderosa, com looks extremamente originais, produzidos a partir do reaproveitamento de jeans. Como o grupo mesmo define, “são produtos casuais, com formas orgânicas, volumes localizados, texturas artesanais e o grafismo criado por diferentes tons de índigo, apresentam a técnica sistematizada de upcycling com materiais residuais – de estoque parado e pós-consumo – e design de superfície não-poluente”. Um trabalho elaboradíssimo, que deveria servir de exemplo pra muuuuitas marcas. Apenas sensacional.
Aí nordeste brasileiro, coração do nosso País, você tem o meu respeito.
*Colaborou com o meu trabalho em Fortaleza: Gomes Avilla (@gomesavilla) – designer gráfico, comunicador e self maker.