Militância de má-fé
A má-fé também é o elemento central na relação entre Valdemar e Bolsonaro, que deve estar ainda mais abalada pelo fiasco judicial
Por Márcio Santilli
Valdemar da Costa Neto é o presidente nacional do PL. Foi protagonista dos grandes escândalos de corrupção que abalaram os governos das últimas décadas. Há um ano, convenceu o presidente Jair Bolsonaro a se filiar ao partido para disputar a reeleição. Liderou uma coligação com o PP e o Patriotas. Bolsonaro acabou derrotado no segundo turno, mas os 50 milhões de votos que obteve no primeiro turno ajudaram o PL a eleger 99 deputados federais, a maior bancada na Câmara na próxima Legislatura.
Valdemar só pensa nas traficâncias que poderia fazer comandando uma bancada desse porte, mas sabe que, para isso, precisa manter Bolsonaro no partido. Em outra hipótese, o presidente poderia dividir a bancada e reduzir a influência política do PL. Diante disso, Valdemar está oferecendo a Bolsonaro a presidência de honra do partido, com direito a um megasalário, mansão no Lago Sul, bairro nobre de Brasília, e – mais importante – o custeio pelo PL dos honorários advocatícios a serem pagos para defendê-lo em dezenas de processos.
O presidente sabe que não terá vida fácil quando deixar o poder. Muita merda virá à tona, com potencial para ampliar a já extensa carteira de ações judiciais, envolver e abalar, ainda mais, as suas relações familiares. Mesmo assim, Bolsonaro não parece propenso a aceitar a proposta, que o transformaria, na prática, num funcionário do partido. Todos sabem que um presidente de honra não manda nada e que Valdemar controla, com apaniguados diretos seus, a executiva nacional do PL.
Bolsonaro não recusou, de cara, a proposta, mas exigiu mais: que Valdemar respaldasse o movimento golpista e seus adeptos mais radicais, por meio de um pedido judicial de anulação do segundo turno da eleição. Valdemar ficou na saia justa, pois já havia sinalizado ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) o seu respeito às urnas eletrônicas. Com intrínseca má-fé, bolou um jeito de engabelar, numa tacada só, o Bolsonaro e o TSE.
‘Voto Legal’
Por R$ 1,3 milhão, o PL contratou um tal Instituto Voto Legal, presidido por Carlos Rocha, para fazer um estudo técnico questionando o desempenho das urnas eletrônicas. O “estudo” alega que os resultados obtidos em urnas fabricadas antes de 2020 não são passíveis de verificação. O documento vazou pela imprensa antes da sua divulgação oficial. Os autores alegaram que se tratava de uma versão preliminar.
Especialistas consultados rebateram de imediato a alegação, mostrando que qualquer pessoa com acesso à internet pode checar, em menos de um minuto, o resultado específico de qualquer urna eletrônica, seja qual for o seu ano de fabricação. Valdemar foi aconselhado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes a não questionar em juízo o resultado das eleições. Mas não adiantou. Prevaleceu a exigência de Bolsonaro.
Assim que o PL ajuizou a sua ação pedindo a anulação do segundo turno, o presidente do TSE, Alexandre de Moraes, deu um despacho condicionando o seu trâmite à apresentação da aplicação das conclusões do “estudo” ao primeiro turno, já que também foram utilizadas nele as mesmas urnas sujeitas ao questionamento. Com isso, estariam em xeque também as eleições para governadores e parlamentares, inclusive os mandatos dos 99 deputados federais do PL.
Se o partido pusesse em questão as eleições em geral, Valdemar seria triturado vivo por seus próprios correligionários. Com a negativa, levou uma inédita lambada judicial de Moraes, que definiu o pleito do PL como litigância de má-fé, sujeita a multa de R$ 23 milhões, extensiva aos demais partidos da coligação. PP e Patriotas recorreram de imediato, dizendo que não participam e nem foram consultados sobre a ação do PL, e que não questionam os resultados das eleições. Foram, então, excluídos, ficando o PL com as suas contas bancárias bloqueadas até o pagamento integral da multa.
Bolsonaro, como sempre, ficou furioso com a decisão de Moraes e convocou uma reunião de emergência no Palácio do Planalto, incluindo os comandantes militares entre os convocados. Decerto, pretendia valer-se da contundência da decisão como pretexto para virar a mesa. Mas os comandantes desaconselharam qualquer reação. Bolsonaro está isolado.
Chovendo no molhado
Valdemar sempre soube que, em juízo, aquela ação não poderia prosperar. Mas pensou que, enquanto tramitasse, poderia servir como uma fachada de legalidade para as manifestações golpistas e, assim, domesticar Bolsonaro. No caso do Valdemar, a pecha da má-fé é chover no molhado, mas a multa aplicada não é trivial. Come um naco importante do Fundo Partidários, limita as suas ações, que ficam sujeitas a contestações internas. A sangria afeta, até mesmo, a condição do PL para honrar a proposta de bancar Bolsonaro futuramente.
A má-fé também é o elemento central na relação entre Valdemar e Bolsonaro, que deve estar ainda mais abalada pelo fiasco judicial. Para o primeiro, o preço para segurar Bolsonaro no PL está ficando alto demais. O presidente tem contas a pagar, mas pode procurar financiadores mais confiáveis. Ambos entendem que já deram ao outro mais do que deviam.
Segundo a mídia, Valdemar estuda a possibilidade de retaliar Alexandre Moraes mobilizando a sua bancada para derrubar a chamada PEC da Transição, que é uma emenda à Constituição para excluir do teto orçamentário o pagamento da bolsa-família de R$ 600 mensais para os mais carentes. Na verdade, essa PEC não tem nada a ver com o TSE e o pagamento é um dos raros pontos comuns defendidos pela maioria no Congresso.
Nessa terça-feira, Valdemar promoveu um jantar num chique restaurante de Brasília para reunir a bancada eleita pelo PL para uma confraternização. Bolsonaro compareceu, após insistentes apelos, mas permaneceu quieto, sem discursar.
Esteve lá, também, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que não é do PL mas quer o apoio da bancada para a sua reeleição. Na sua chegada, foi chamado de traidor e de covarde por um grupo de golpistas indignados que foi até lá e pôde constatar o contraste entre a situação em que estão, acampados há um mês diante do Quartel-General do Exército, em Brasília, e a dos que eles acabaram de eleger. É a cobra se comendo pelo rabo.