Lula e os males do Brasil
Em artigo para a Mídia NINJA, o sócio-fundador do ISA Marcio Santilli reflete sobre a herança bolsonarista de miséria, sectarismo, negacionismo e devastação que o ex-presidente deve enfrentar caso seja eleito em 2022
Miséria
Debelar a miséria humana — fome, doença e ignorância — é a maior das prioridades nacionais. Lula tem essa clareza e lidera as pesquisas de intenção de votos para presidente pela memória social resiliente de ações de escala, como o Bolsa-Família, em contraponto ao agravamento recente da miséria.
Bolsonaro é um pródigo produtor de miséria e o Brasil retrocedeu bastante nesses três anos. Mas ele sentiu uma pitada desse gostinho de reconhecimento, de mérito prá lá de discutível, quando foi instituído o auxílio emergencial de R$ 600 reais em resposta à primeira onda da pandemia.
Porém, a crise sanitária se alongou e se agravou além do que se poderia imaginar, também por conta da loucura negacionista do governo e da sua incapacidade de unir o país, mesmo diante da emergência.
Bolsonaro tenta grilar o reconhecimento a Lula através do “novo” auxílio emergencial. Na verdade, um repeteco, na casa dos R$ 400, com vistas às eleições. Mas parece que não está funcionando, pois Lula segue mantendo ampla vantagem na faixa de renda à qual ele se destina. A tentativa de grilo traz o reconhecimento implícito de que a prioridade é enfrentar a miséria, que Bolsonaro só fez aumentar.
Sectarismo
A miséria, primeiro dos males, deve eleger Lula presidente. Mas, para enfrentá-la, o presidente precisará recuperar a confiança da sociedade ativa — aquela que trabalha, investe. E assim ativar a economia, gerando empregos e arrecadação. Não será a polarização, ou a lógica do “nós, versus, eles”, padrão dominante nos últimos governos, que resolverá a questão. O Brasil precisa de uma boa dose de união.
Isso parece blá-blá-blá retórico, mas não é. O Brasil, em 2023, será muito diferente do de 2003. A começar pela resistência dos derrotados que, mesmo que fiquem fragmentados, fustigarão o que vier pela frente. E a continuar pela herança devastadora do atual governo e pela necessidade de uma reconstrução nacional, improvável sem um amplo consenso.
Será preciso emitir um sinal forte de país — e não de facção — à opinião pública mundial, para tirar o Brasil do isolamento, recuperar a sua credibilidade e construir parcerias e acordos que estimulem o desenvolvimento sustentável.
Bolsonaro absorveu, por oportunismo, a demanda por transferência de renda, mas não vai acolher a demanda por maior união nacional. Ele é o próprio aético do confronto. A lógica do “nós, versus, eles” reforça sua estratégia.
A política de alianças é o contraponto eficaz ao bolsonarismo, antes e depois das eleições. Claro que ela também estabelece limites e mediações para o exercício do mandato, mas viabiliza os avanços imediatos necessários para tirar o Brasil do fundo do poço.
Negacionismo
Bolsonaro faz populismo com a sua própria ignorância. Prescreve medicamentos comprovadamente ineficazes para Covid-19, mas nega a eficácia das vacinas, mesmo diante dos seus evidentes resultados. O presidente tem acesso a todas as fontes de informações que quiser, mas prefere fake news. Essa postura criminosa responde por boa parte das mais de 620 mil vidas perdidas.
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Presidente Jair Bolsonaro na rampa do Palácio do Planalto|Alan Santos/PR
Responde, também, pelo desmantelamento sistemático das instituições públicas de pesquisa, como Anvisa, CNPQ, IBGE, Inpe, Ipea, universidades federais e tantas outras. É espantoso que o governo não tenha se mobilizado, em tempo real, para produzir nossas próprias vacinas, enquanto muito dinheiro público foi investido em redes de desinformação e em tratamentos inócuos.
A aversão presidencial à verdade é cada vez mais percebida pela população. Segundo o Datafolha, 55% dos brasileiros dizem “nunca” acreditar no que Bolsonaro diz e 38%, só “às vezes”. Seu descrédito é planetário e prejudica fortemente as relações externas, tanto com instituições multilaterais, como a OMS, quanto com governos, como o da China, nossa maior parceira comercial.
Se eleito, Lula terá trabalho para reconstruir as instituições responsáveis por dotar o Estado e as políticas públicas das informações científicas indispensáveis para se orientarem. Mas ele dispõe de reconhecimento internacional para recuperar a credibilidade do país junto aos seus parceiros e interlocutores externos.
Devastação
A política do atual governo, de devastação ambiental e de afronta aos direitos dos povos indígenas e das populações tradicionais, é um escândalo mundial. Bolsonaro sequer compareceu à COP26, realizada em Glasgow, Escócia. E o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, só concordou com a transmissão de uma gravação dele após a delegação brasileira concordar e assinar o compromisso, assumido por mais de 100 países, de zerar o desmatamento ilegal.
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Queimada e vista em meio a area de floresta proximo a capital Porto Velho. Foto: Bruno Kelly/Amazonia Real.
Pior, mesmo, foi a descoberta de que o governo brasileiro já sabia antes, e sonegou a informação à COP26, de que a taxa anual de desmatamento na Amazônia apurada pelo Inpe deu um salto de 22%, por cima de dois outros aumentos anteriores. Bolsonaro tentou negar o evidente aumento do desmatamento, mas a descoberta da fraude, logo após a COP, pegou muitíssimo mal.
A devastação ambiental não ocorre, apenas, na Amazônia, mas em todos os biomas. O fogo consome o Pantanal. O lixo infesta o litoral. Bolsonaro promove a invasão e a expansão de garimpos ilegais nas Terras Indígenas e nas Unidades de Conservação Ambiental. Mas a devastação também se estende à legislação e às políticas públicas.
Lula tem grandes trunfos e fragilidades na questão climática e socioambiental. Entre 2006 e 2012, a queda continuada na taxa de desmatamento na Amazônia foi a maior redução de emissões de gases estufa da história recente. Por outro lado, Lula passou a se lambuzar de petróleo após a descoberta do pré-sal e construiu barragens nos rios Xingu, Tapajós e Madeira.
Corrupção
Claro que a lista dos males que assolam o Brasil poderia prosseguir indefinidamente, dando uma dimensão enciclopédica a esse modesto texto. Mas eu vou concluí-lo dando um trato no tema da corrupção, que teve grande importância na eleição do Bolsonaro em 2018.
As maldades ocorridas nos governos do PT, principalmente em contratos da Petrobrás e da Eletrobrás relativos à exploração do pré-sal e à construção de hidrelétricas na Amazônia, ensejaram a Operação Lava Jato, a prisão do Lula, a queda da Dilma e o fortalecimento da direita, que abriu espaço para a vitória do Bolsonaro.
Porém, a adesão do juíz Sérgio Moro ao governo, com a sua ida para o Ministério da Justiça, deu sentido político a articulações havidas entre ele e procuradores responsáveis pela Lava Jato, levantando suspeitas sobre a isenção dos processos judiciais e à anulação pelo STF das condenações ao Lula, com a sua consequente libertação.
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Jair Bolsonaro e ex-ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro|Antonio Cruz/Ag. Brasil
Além disso, Bolsonaro praticou estelionato eleitoral, rifando a bandeira da luta contra a corrupção. A queda e o rompimento com Moro são indicativos disso. Assim como o seu casamento com o Centrão, as rachadinhas e as estrepolias imobiliárias da sua família, o orçamento secreto e o afrouxamento da lei sobre a improbabilidade administrativa. Em três anos, Bolsonaro se nivelou ao padrão histórico da resiliente corrupção.
Não há dúvida que a corrupção drena recursos públicos importantes para reforçar a luta contra a miséria e outros males nacionais. Embora haja alguma leniência cultural a respeito, a grande maioria dos brasileiros repudia a corrupção e sabe muito bem quem paga essa conta. Porém, também aos olhos dessa maioria, a miséria se agravou em todas as suas formas, se impondo como prioridade principal e destacando o diferencial do Lula.
Pode ser que as preferências atribuídas pelas pesquisas às pré-candidaturas de Sérgio Moro e de Ciro Gomes sejam representativas, pela direita e pela esquerda, da parcela dos brasileiros que ainda coloca, para 2022, a corrupção como referência principal para a sua definição de voto. Mas eles também serão questionados a respeito, sem contar o tom agressivo da disputa entre eles pelo terceiro lugar nas pesquisas. Tudo indica que o tema perdeu força em relação a 2018.
Futuro próximo
Fica em aberto um conjunto de dúvidas sobre como seria tratada a questão da corrupção num eventual novo governo Lula. Por um lado, se espera que o financiamento público das campanhas eleitorais tenha reduzido a dependência de recursos privados do PT e de outros partidos. Por outro lado, a composição da frente ampla que reconduziria Lula ao poder não recomenda grandes ilusões.
Preocupam as posições assumidas pela bancada do PT no contexto da revanche contra a Lava Jato. A reforma da lei sobre improbidade administrativa foi muito além de corrigir excessos e favoreceu a impunidade. A recondução de Augusto Aras à Procuradoria Geral da República também foi conveniente ao partido. Será que Lula, reconduzido, teria, agora, o seu próprio Aras? Ou Geraldo Brindeiro?
Por outro lado, seria esperável que Lula e o PT tivessem compreendido a extensão do dano histórico causado pelo flanco político aberto pela questão da corrupção. Espera-se, sobretudo, que a sociedade brasileira seja capaz, depois de tanto sofrimento, de desenvolver novos instrumentos e parcerias para controlar o uso dos recursos que lhe pertencem, fundamentais para melhorar a sua qualidade de vida.