Litoral ameaçado
O aumento do nível do mar tem um potencial devastador sobre os mais de nove mil quilômetros de extensão da costa brasileira
O ano de 2024 foi o mais quente da História, quando o aumento da temperatura média na superfície da Terra atingiu 1,5 ºC em relação ao período pré-industrial. Também aumentou a ocorrência de eventos climáticos extremos, inclusive no Brasil, com a cheia catastrófica no Rio Grande do Sul e a estiagem aguda na Amazônia e em outras regiões, uma das razões para a crise de queimadas de grandes proporções que tomou grande parte do país.

As mudanças climáticas estão sendo percebidas pela maioria da população, que, além das secas e enchentes, sofre com as ondas de calor, com o fogo e a fumaça, as perdas agrícolas e florestais, as doenças respiratórias. Mas há pouca gente pondo nessa conta a ameaça que o aumento do nível e da temperatura do Atlântico Sul representa para o Brasil.
Um estudo da ONU de 2024 inclui o Rio de Janeiro entre as grandes cidades do mundo que serão atingidas pela elevação do nível dos oceanos. No caso, há previsão de um aumento de 21 centímetros no nível do Atlântico Sul até 2050, o que teria impactos devastadores na cidade. O mesmo levantamento informa que no estado do Rio de Janeiro, entre 1990 e 2020, o nível do mar já subiu 13 centímetros.
O Complexo da Maré, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, com 125 mil moradores segundo o censo do IBGE de 2022, seria inundado frequentemente, tornando-se inabitável. Praias emblemáticas seriam tomadas pelo mar e, nas ressacas e tempestades, as ondas afetariam quase toda a orla, causando danos à infraestrutura urbana, residências, serviços e estabelecimentos comerciais. Um indicativo atual desse cenário, em menor escala, é a situação de Atafona, distrito de São João da Barra, no litoral norte do estado, onde o oceano já engoliu mais de 500 casas.
Outras situações
Recife, chamada de “Veneza Brasileira”, é a capital de estado mais ameaçada pelo avanço do mar. Um relatório do IPCC (Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas, na sigla em inglês) da ONU a coloca como a 16ª grande cidade mais ameaçada do mundo. Um relatório da UFRPE, Universidade Federal Rural de Pernambuco, apontou que 44% da área do município tem risco alto de inundação. Mais de 200 mil pessoas vivem em áreas sujeitas a deslizamentos ou inundações.

Mais ao norte, está situada a cidade de Baía da Traição, também atingida pelo aumento do nível do mar, que represa a foz do Rio Paraíba. A Terra Indígena Potiguara, com mais de 30 aldeias, abrange áreas neste e em outros dois municípios vizinhos. A maré e o represamento dos rios estão dividindo o território e isolando algumas aldeias.
O Mapa de Risco à Erosão Costeira do Estado de São Paulo, do Instituto Geológico, mostra muitas praias vulneráveis ao aumento do nível do mar: em Ubatuba, Itaguá, Ubatumirim, Barra Seca; em Praia Grande, Fortaleza e Maranduba; em São Sebastião, Massaguaçu e Barequeçaba; em Caraguatatuba, Tabatinga, Enseada, São Francisco e Pontal da Cruz; em Ilhabela, Perequê; em Bertioga, Itaguaré e São Lourenço; em Guarujá, Pernambuco e Astúrias; em São Vicente, Capitão e Gonzaguinha; em Itanhaém, Itanhaém; em Peruíbe, Peruíbe e Guaraú; em Iguape, Itacolomi, Jureia e Leste; na Ilha Comprida, Ilha Comprida.
Implicações
Em todos os estados costeiros há exemplos do gênero. O aumento do nível do mar tem um potencial devastador sobre os mais de nove mil quilômetros de extensão da costa brasileira, considerando ilhas e reentrâncias. Além das pessoas diretamente afetadas, serão impactados o turismo, a pesca, o mercado imobiliário, a infraestrutura e a arrecadação dos municípios e estados. Os que perderem as suas casas e as suas fontes de renda irão migrar? Para onde?

A saga secular dos retirantes do Semiárido nordestino e a piora contínua da situação do clima na região, por onde a desertificação avança, demonstram o péssimo histórico do país para reagir aos danos causados pelas mudanças do clima. A nossa incompetência crônica, diante de cenários mais do que prováveis, causa frio na barriga e desespero na alma.
A postura majoritária na elite política e econômica é naturalizar desigualdades e, se possível, criar currais assistenciais e eleitorais entre os flagelados. Será que a dimensão gigantesca da catástrofe que vem do oceano poderá chacoalhar essa impostura?
Enquanto o oceano aquece, cresce e apodrece, os conflitos acirram-se. Os orçamentos militares estão em alta mas os recursos para se enfrentar da fome à mudança climática estão em baixa. Relatório do Política por Inteiro, iniciativa do Instituto Talanoa, aponta que o orçamento federal de 2025 no Brasil destinado à gestão de riscos e desastres é de R$ 1,9 bilhão, de um total de R$ 30 bilhões, ou seja, somente 6,3% do orçamento total.
É melhor não esperar por soluções que caiam do céu, ou venham do mar. O menos pior é se reinventar. Por ora, sobreviver, organizadamente, mesmo que num Brasil sem praias.
