Fogo nos racistas, cadeia para a milícia e justiça para Marielle e Anderson. Começamos este Novembro Negro com um marco histórico contra a impunidade no nosso país. Depois de seis anos, sete meses e 17 dias, o Brasil respirou um pouco mais aliviado. Na quinta-feira (31/10) a Justiça condenou finalmente os ex-PMs Ronnie Lessa e Élcio Queiroz pelo assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista dela, Anderson Gomes, por duplo homicídio triplamente qualificado, tentativa de homicídio e receptação.

A parlamentar que fez tanta gente se reencantar com a política, agora nos faz voltar a acreditar na Justiça. É, sim, possível punir criminosos poderosos neste país. Com o julgamento de quinta, derrotamos simbolicamente a direita corrupta e criminosa que espalhou Fake News, quebrou placas, agrediu a memória de Marielle e que queria acobertar os assassinos e ainda deixar impunes os seus mandantes. “As pessoas precisam parar de normalizar os corpos que caem nesse país”, disse a ministra da Igualdade Racial Anielle Franco, irmã de Marielle.

É importante lembrar que durante o Governo Bolsonaro as investigações não andaram quase nada. Provas foram deturpadas, houve trocas sistemáticas dos responsáveis pelo inquérito e até do promotor: tudo para impedir a elucidação do crime. A eleição de Lula tornou possível esse julgamento e esta condenação histórica.

E mais: foi a sede de justiça da família, amigos, colegas de militância e apoiadores de todo o mundo que cobraram durante todos esses anos, que perguntaram nas ruas e nas redes: quem matou Marielle e Anderson?

Como disse nossa companheira Monica Benicio, vereadora no Rio de Janeiro e viúva de Marielle, “nenhuma sentença é reparadora. Nenhuma condenação é restauradora da ausência”. Dói muito. Perdemos uma amiga de luta, um farol que nos ensinava a fazer política com afeto, ousadia e coragem. Mas não abaixamos a cabeça, não nos rendemos a ameaças. Fomos pra cima. Em especial as mulheres. Lessa e Queiroz pegaram pena máxima pela nossa garra e nossa luta. Fomos nós. Foi você, fui eu. Foi cada um que participou dos atos pela memória de Marielle, que compartilhou publicações nas redes, que não deixou o caso ser esquecido pela polícia, pela Justiça e pelo mundo. Organizamos nossa revolta e transformamos Marielle em um símbolo de força, luta e resistência.

E vamos seguir em frente. Queremos agora a punição para os mandantes do crime. Mas não paramos aí, queremos botar esse sistema corrupto e miliciano no chão.

Descortinando o crime organizado

Roubo de terras, invasões, controle eleitoral e econômico. As investigações do assassinato de Marielle elucidaram a relação das milícias do Rio de Janeiro com o poder político. E foi somente após a federalização do caso que foi revelado que os mandantes do crime pertenciam ao alto escalão do governo e que tinham interesses econômicos que estavam sendo prejudicados por denúncias de Marielle. A parlamentar também incomodava com sua defesa contundente às famílias de pessoas ameaçadas ou mortas por milicianos.

Os irmãos Domingos Brazão, conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE), e Chiquinho Brazão, deputado federal, foram apontados pela investigação como mandantes do assassinato da parlamentar. O ex-chefe da Polícia Civil Rivaldo Barbosa seria o mentor e o ex-PM Robson Calixto teria ajudado a desaparecer com a arma usada no crime. Já o major Ronald Paulo Alves Pereira teria monitorado a rotina de Marielle. Por conta do foro privilegiado do deputado federal Chiquinho Brazão, o caso está no Supremo Tribunal Federal.

Segundo inquérito da Polícia Federal (PF), uma disputa em torno de um projeto de regularização fundiária com os irmãos Brazão pode ter sido o motivo para o crime. Aliados a pesquisadores e jornalistas investigativos, relatórios da polícia descortinaram a forma de agir das milícias, que se valem de ameaça, extorsão e violência armada para controlar o processo de loteamento e urbanização das periferias da região metropolitana do Rio. Eles usam do envolvimento com o poder político para buscar favorecimento para ocupações irregulares e realizar a grilagem das terras, ou seja, o roubo delas por meio de invasões e registros ilegais. Além disso, milicianos cobram taxas de moradores e comerciantes para monopolizar o comércio e a venda de serviços, como gato de internet, água, gás, a distribuição de energia elétrica, dentre outros.

Também foi revelado pelo inquérito que Rio das Pedras e algumas comunidades da zona oeste do Rio, que são áreas onde há atuação de milícias, seriam redutos eleitorais da família Brazão.

Outra atividade lucrativa das milícias é a exploração imobiliária O ex-policial militar Ronnie Lessa, que teria efetuado os disparos contra Marielle informou, em sua delação premiada, que receberia dois terrenos que seriam invadidos na Praça Seca, na zona oeste, para implantar sua própria milícia.

Justiça para vítimas da milícia

Vamos seguir acompanhando cada etapa desse processo. Com a mesma gana que cobramos respostas para “quem matou Marielle”, vamos seguir perguntando “quem mandou matar Marielle”? E não descansaremos enquanto os responsáveis não forem punidos.

Marielle veio mesmo para abalar as estruturas. E gerou sementes. Lutaremos por ela e por todas nós. E por todas as vítimas das milícias. Por João Vitor, de 14 anos, que foi baleado na cabeça quando saía de uma festa de aniversário na Vila Kosmos. Por Kathlen Rocha, que foi alvejada com um tiro de fuzil no peito disparado por um policial militar em 2021, durante confronto entre criminosos e policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), também no Rio. Lutaremos por um mundo sem violência de raça e gênero e sem violência política. Por um mundo em que possamos existir e amar livremente, tendo nossos direitos respeitados.

Envio meu abraço carinhoso e minha solidariedade à ministra Anielle Franco, a Monica Benicio e a toda a família e amigos de Marielle. Por serem obrigados a reviver toda a dor de sua perda, nos últimos dias.

E termino minha fala com as últimas palavras que Marielle disse na Câmara e que levaremos sempre, em cada passo da nossa caminhada, honrando as que vieram antes e as que virão depois:

“Para encerrar, gostaria de reforçar e dizer das mulheres negras que são nossas referências. Quero citar Audre Lorde, mulher negra, lésbica, escritora de origem caribenha, mas dos Estados Unidos. Feminista e ativista pelos direitos civis. “Eu não sou livre enquanto outra mulher for prisioneira, mesmo que as correntes dela sejam diferentes das minhas. Por isso, nós vamos juntas, lutando contra toda forma de opressão”.