Justiça cega para o racismo
Precisamos lutar por cada um de nós que já sentiu o peso de ser reduzido, de ser silenciado, de ser desumanizado.
Eu escrevo com a dor de quem carrega na minha pele preta a marca de séculos de opressão. Escrevo com a indignação de quem vê histórias como a de Sônia Maria de Jesus se repetirem, mostrando que a escravidão no Brasil nunca acabou completamente — ela apenas mudou de forma, escondeu-se nos cantos sombrios das casas, nas fazendas, nas indústrias.
Sônia foi resgatada depois de 40 anos vivendo em condições de trabalho análogo à escravidão, na casa de um desembargador em Santa Catarina. Negra, surda e analfabeta, foi privada de tudo que nos faz humanos: liberdade, dignidade, educação e amor. Desde criança, foi arrancada de sua família e forçada a servir sem salário, sem descanso, sem direitos. Quando finalmente foi resgatada, a Justiça, em uma decisão absurda, autorizou seu retorno ao lar de quem a explorou, como se os laços de violência fossem mais legítimos do que os de sangue. Imaginável a justiça decidir pela manutenção do cárcere?
O Natal está chegando. Para muitos, é um tempo de celebração ao lado da família. Mas e para Sônia? Onde estará a liberdade de passar essa data junto aos seus irmãos biológicos? A mãe de Sônia morreu antes que pudesse reencontrá-la.
Eu sinto a dor de Sônia como minha. Porque ela não é só de Sônia. Ela é de todos nós, pretas e pretos, que ainda lutamos para sermos vistos como pessoas plenas. Quantos negros ainda não estão livres? Em quantos cantos do nosso estado, do nosso país, corpos pretos continuam sendo explorados, encarcerados, violentados e descartados?
O caso de Sônia revela as facetas mais cruéis do racismo estrutural. Porque não é só sobre exploração econômica; é sobre um sistema que nega nossa humanidade. A decisão de que ela retornasse ao convívio de seus agressores mostra que, para muitos, negros ainda são propriedades. Com a desculpa de que somos “quase da família”, eles mantêm o controle sobre nossos corpos.
Escrever este texto é como gritar em um deserto, mas eu não me importo com a quantidade de areia. Não é só pela liberdade de Sônia, mas pela de tantos outros que permanecem invisíveis. É por cada criança negra arrancada de sua família para servir, por cada homem e mulher negra que carregam o peso do Brasil nas costas, enquanto a sociedade finge que a escravidão ficou no passado.
Quando os corpos pretos serão verdadeiramente livres? Quando deixaremos de ser reduzidos a estatísticas, a exceções? Não quero mais ouvir que Sônia é “um caso isolado”. Não é. Sônia representa milhares de outros corpos negros explorados neste exato momento.
Neste Natal, enquanto tantas pessoas brancas celebram suas liberdades e privilégios, nós continuamos lutando por algo básico: o direito de existir em plenitude. Precisamos lutar por Sônia. Precisamos lutar por nós. Precisamos lutar por cada um de nós que já sentiu o peso de ser reduzido, de ser silenciado, de ser desumanizado.