Ja-ir embora
Tanto Bolsonaro, quanto a ditadura, promoveram a hipertrofia e o desvio de função nas Forças Armadas
Passou da hora! O próprio Jair reconhece que há tempo demais entre a eleição e a posse. Auxiliares próximos comentam que, após um ligeiro surto de euforia entre o planejamento e a execução dos atos de bolsoterrorismo daquela sinistra segunda-feira (12), Jair caiu, de novo, em profunda depressão.
Enquanto isso, só nesta última semana, ruralistas encapuzados assassinaram Estela Verá, líder espiritual dos Guarani-Kaiowá de Porto Lindo (MS), e garimpeiros mataram o filho de Katariya Yanomami, líder da comunidade de Tirei, em Roraima. Aproveitam os últimos dias do assassino para assassinar mais e mais…
E assim têm sido esses dias, de fatos consumados, de bombas de efeito retardado, de emergência das heranças malditas. E bota maldita nisso! Recomendo fortemente a todos para que se poupem e se protejam bem neste momento em que o país está no ápice do seu exorcismo.
Tendo eu sobrevivido a mais de 20 anos de ditadura, uma jovem amiga me pergunta sobre o que foi pior: Bolsonaro ou a ditadura? Pergunta complexa para se responder…
Tomando como referência a extensão temporal do sofrimento, não há dúvida de que foi a ditadura: cinco vezes mais tempo. Foi ela, também, que revelou requintes de crueldade, sacrificando oponentes no pau-de-arara, com choques elétricos, depois sepultados em covas coletivas e clandestinas. Bolsonaro costuma homenagear torturadores, mas a resiliência democrática não lhe permitiu alcançar um patamar equivalente de violência
Indução à morte
Mas é difícil dizer que a ditadura tenha sacrificado a vida de centenas de milhares de pessoas, como Bolsonaro fez – e continua fazendo – durante a pandemia. A ditadura fazia campanhas de vacinação, até para camuflar diante do povo a sua sanha assassina. Assim como seria impensável, na ditadura, uma política armamentista como a implementada por Bolsonaro. Os inimigos armados eram os guerrilheiros “de esquerda”.
Sob a insígnia “Integrar para não Entregar”, a ditadura estuprou a Amazônia, rasgando estradas do sul para o norte e do leste para o oeste, promoveu um novo êxodo do Nordeste para a região e atropelou povos indígenas e quem mais tentasse se interpor ao tsunami predatório sobre todas as formas de vida da floresta. Sem falar da elite política e empresarial colonial forjada de fora para dentro daquela região.
Bolsonaro não dispôs de tempo e de recursos para devastar tanto, mas superou a ditadura em alguns quesitos fundamentais. A predação mineral, dispondo de equipamentos mais pesados, amplificou o roubo de riquezas, a contaminação dos rios, e a cooptação de indígenas. No seu governo, o narcotráfico passou a controlar grande parte da extração ilegal dos recursos naturais e extensas regiões relegadas, deliberadamente, à ausência de Estado. “Entregar para não Integrar” a região no rumo do desenvolvimento sustentável.
Destruição do Estado
A ditadura militar implantou um projeto de desenvolvimento econômico discricionário, concentrador de renda e predatório, o denominado “Milagre Brasileiro”, que ruiu a partir da crise do petróleo, em 1973. Mas deixou alguma herança positiva para a industrialização e o provimento de infraestrutura para o país. Bolsonaro fez um governo-cupim, de corrosão das estruturas de Estado, de geração de miséria e não deixa qualquer obra relevante.
Tanto Bolsonaro, quanto a ditadura, promoveram a hipertrofia e o desvio de função nas Forças Armadas, inundando os cargos civis de apaniguados militares, despreparados para aquelas funções. Mas a ditadura, pelo menos em alguns momentos, foi capaz de recrutar quadros técnicos, ou do setor privado, com melhor formação e mais competência que os da equipe mambembe do Bolsonaro.
Os generais-presidentes praticavam, sim, o culto à personalidade, mas havia um mínimo de sobriedade e não havia reeleição, não havendo incentivo à ditadores pessoais, ao estilo do “mito” que o bolsonarismo tentou construir. Por outro lado, nenhum dos generais sobreviveria numa disputa eleitoral verdadeira e os seus nomes eram impostos, num jogo de cartas marcadas em colégios eleitorais adredemente conformados, enquanto Bolsonaro, apesar do negacionismo crônico em relação às urnas eletrônicas, venceu uma eleição livre e democrática e perdeu outra, mas chegando a 58 milhões de votos.
Imbecilidade militante
Os ditadores, seus ministros e assessores mentiam descaradamente. A figura de Mário Juruna, com o seu gravador, registrando e, depois, divulgando e desmascarando mentiras e contradições das autoridades, foi emblemática disso. Eventualmente resvalavam pela baixaria total, como o ex-ditador João Batista Figueiredo, que dizia preferir o cheiro de cavalo ao cheiro de gente. Mas o boicote à vacinação, o flerte com o terraplanismo e o culto à violência civil, que são expressões fortes da imbecilidade militante do bolsonarismo, não teriam a mesma acolhida na ditadura militar.
Isso nos dá uma medida da decadência intelectual e ideológica da extrema direita nos últimos 40 anos no Brasil. A promoção massiva da ignorância, tanto lá quanto cá, acabou impulsionada pelas redes sociais para enormes aberrações, apesar do notável avanço da ciência nesse período.
A depressão de Bolsonaro está se espraiando por todos os que caíram no blefe do auto-golpe que, afinal, não veio e não virá. As hordas de militantes imbecilizados que foram mantidas nas portas dos quartéis estão revoltadas com os comandantes militares e com Bolsonaro, que se incomoda com as cobranças e bate boca com os próprios apoiadores. Enquanto isso, mais e mais manipuladores e financiadores vão sendo investigados, multados e presos.
O processo de disseminação de desinformação e distorção da realidade que andou nos atormentando nos últimos quatro anos deixa graves recados para todos, já que arrastou consigo quase metade da população. Para a direita, se, por um lado, ele abriu espaço pelo populismo, por outro lado também comprometeu a sua própria sustentabilidade política. Para a esquerda, é um recado de que estreitou o seu espaço para reincidir em erros históricos, pois os lobos estão sempre à espreita e já mostraram que podem, eventualmente, nos levar para as profundezas do inferno.