Por Susana Prizendt

Vai ano, vem ano, e as épocas de chuvas fortes trazem as cheias a muitos rios espalhados pelos territórios. É assim desde os primórdios, no Brasil e no mundo. Só que, depois que inventamos certas maravilhas, como a emissão de gases via queima de combustíveis fósseis e a impermeabilização do solo, conseguimos transformar esses ciclos naturais em verdadeiras tragédias. O desastre da vez, em proporções quase inimagináveis, está sendo vivido há mais de um mês pelo povo gaúcho, vítima de um verdadeiro crime, como revela a história do comportamento de administradores estaduais e municipais da região, que, mesmo carecas de saber, pelos alertas dos órgãos científicos, que a situação estava insustentável e que a bomba climática poderia explodir a qualquer momento, fizeram pior do que cruzar os braços: promoveram ações que aceleraram a explosão e intensificaram as suas consequências danosas.

Se a fritura climática ocorre em escala planetária e tem suas raízes sobretudo no modo como os países do norte global agiram durante os últimos séculos, com seus bilionários explorando ilimitadamente gentes e ambientes para se enriquecer e obter poder, existem responsabilidades locais sempre que uma situação dramática, como a vivida atualmente no sul brasileiro, invade os noticiários. Com uma conformação geográfica em que há forte presença de áreas alagáveis, a região de Porto Alegre está na lista de lugares que podem sofrer impactos fulminantes causados pelos desequilíbrios ambientais crescentes no país e no mundo. Há tempos, os alertas soaram, como revela o relatório Brasil 2040: cenários e alternativas de adaptação à mudança do clima, produzido pelo governo Dilma entre 2013 e 2015. Mas, ao invés de tomar as providências necessárias, a elite político-econômica resolveu quadruplicar a aposta e pisou fundo no acelerador do caos.

Não vou jogar toda a culpa sobre as costas de dirigentes da máquina pública e de empresários inescrupulosos. Em geral, a população também não é santa e, seja por comodismo ou por acreditar que não é mesmo sua tarefa tomar alguma atitude, muita gente seguiu tocando lenha na fogueira, consumindo o que dava e desejava, descartando o que não queria mais, ignorando os avisos que a própria realidade, personalizada no que chamamos de Mãe Terra, cansou de enviar. E – algo gravíssimo – votando errado! Por mais que reconheçamos a manipulação execrável que a gangue formada pelos donos nacionais e internacionais do poder vem exercendo nos últimos anos, sentada em cima de redes de tecnologia que escapam da regulação do Estado, não é possível isentar as pessoas que seguem lavando as mãos em relação à postura criminosa de certos políticos e empresários na esfera socioambiental. Os votos em candidatos que se posicionam abertamente contra as medidas de proteção à natureza, argumentando que elas impedem o desenvolvimento econômico, têm se ampliado em muitas localidades.

Quem mais colhe as tempestades não é quem as semeia

O que é mais doloroso é constatar, mais uma vez, que setores da população que menos agridem o ambiente e mais se esforçam em direção às mudanças positivas acabam sofrendo consequências tenebrosas, perdendo suas moradias, suas posses pessoais, seus instrumentos de trabalho, suas lavouras e até a própria vida em cenas apocalípticas que poderiam ter sido evitadas. É mais uma comprovação – um tanto dura de aceitar, sem sentir revolta frente à tamanha injustiça -, de que não é possível construir um pequeno paraíso agroecológico em meio ao inferno que a realidade parece virar nesses momentos. Até porque quem se beneficiou durante o período em que o equilíbrio ambiental foi sendo minado, contribuindo ativamente para isso, não costuma fazer mea culpa nem responder pelos prejuízos que causou à coletividade – muito menos pelo sofrimento gerado às pessoas que tentaram, ao longo do tempo e como puderam, evitar as tais tragédias anunciadas.

A pergunta de Márcia Riva, do Assentamento Integração Gaúcha em Eldorado do Sul (que foi totalmente imerso pelas águas), em entrevista ao Tutaméia, não poderia ser mais certeira: “cadê o Agronegócio agora?” Agora, eu não sei, Márcia, mas nos últimos 40 anos, o Agronegócio do RS esteve mesmo é expandindo seus domínios sobre uma área equivalente a 23 cidades de São Paulo, antes ocupada pelos ecossistemas locais, como florestas, campos e banhados. Isso significa que o território de cultivo de soja quintuplicou e que a atividade agropecuária ocupa, hoje, quase metade do estado.

Enquanto isso, os povos tradicionais e os assentadxs da Reforma Agrária têm insistido em cuidar da terra e dos seres vivos, mesmo sob violência constante por parte de quem é viciado em dinheiro e privilégios. Eles sofreram especialmente nos anos Temer-Bolsonaro, sob o lema do “nenhuma nova demarcação ou assentamento” e, mesmo com o novo governo, que é refém do Congresso Nacional mais ruralista que já tivemos, ainda seguem levando porrada. Se, hoje, temos um Ministério dos Povos Indígenas, conduzido por uma liderança reconhecida como Sônia Guajajara, e o MDA foi recriado, lançando, recentemente, o Programa Terra da Gente para assentar quase 300 mil famílias até 2026, ainda assistimos à expansão das fronteiras agroexportadoras sobre solos e corpos nos quatro cantos do país.

Não dá para não ressaltar o papel cruel que o Ogronegócio vem desempenhando na destruição sistemática das condições essenciais necessárias para que tenhamos a mínima harmonia ambiental. Se apoiando em uma estrutura de cinco séculos de brutal exploração do território brasileiro, a elite agronegoceira do país se aliou às gigantes internacionais de insumos agrícolas e de alimentos para impor um modelo tirânico de produção, em que os ecossistemas são desmantelados, a cultura alimentar é pisoteada, os rios e fontes são sugados e a população é expulsa dos campos, das águas e das florestas, engordando as periferias das cidades, onde não pode cultivar o que come e é obrigada a comprar ultraprocessados e envenenados, como mostra mais uma edição – a terceira da série – do levantamento Tem Veneno Nesse Pacote, que acaba de ser divulgado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor – IDEC. O resultado é mais área impermeável, mais embalagem plástica, mais doenças crônicas e menos esperança de reverter o declínio ecológico que vivemos.

Já cansamos de chover no inundado para descrever o que o sistema produtivo Ogro vem fazendo com o ambiente, seja através de suas lavouras e criações de animais, seja na manipulação da classe política e do imaginário popular. Escrevi muitos artigos sobre tudo isso e eles podem ser lidos em vários portais progressistas como Outras PalavrasGGNLe Monde e Mídia Ninja. Mas é preciso juntar as pontas e deixar explícito que o drama causado pelos dilúvios no Rio Grande do Sul, assim como a seca que afetou o mesmíssimo estado há um curto tempo atrás, exigindo que o governo socorresse muitas das culturas rurais, está umbilicalmente ligado com a forma como os donos dos latifúndios têm tratado a terra – a que possuem e a que nem deles é, já que avançam sobre áreas de proteção, quilombos, reservas indígenas e interferem nas decisões que impactam o modo como lidamos coletivamente com a estrutura territorial do país.

Do Congresso Nacional às pequenas prefeituras e câmaras municipais, o lobby dos grandes produtores de commodities tem sido constante quando se trata de “flexibilizar” regras que protejam pessoas e ambientes e fazer coro com os representantes do mercado financeiro para pregar o Estado mínimo. Privatização dos lucros e socialização dos prejuízos é o objetivo – já conquistado em muitos aspectos – perseguido por essa corja neoliberal, sempre nos primeiros lugares na fila para receber socorro financeiro do poder público quando dá suas escorregadas, muitas delas planejadas em detalhes para que a corda arrebente no CNPJ, mas não no CPF.

Não é coincidência que a concentração de renda nas mãos dos bilionários defensores da ausência estatal nos setores básicos da economia ande a passos largos junto à explosão dos fenômenos climáticos extremos. Um relatório que acaba de ser divulgado pela IPES-Food revela que “o aumento dos preços dos terrenos, a apropriação de terras e os esquemas de carbono estão criando uma compressão de terras sem precedentes, ameaçando os agricultores e a produção de alimentos”. É o legado que a elite internacional nos deixa: desastres demais e comida de menos.

Da água ao caldo tóxico 

A frase acima foi extraída do título de um artigo que escrevi para o Relatório dos Direitos Humanos no Brasil de 2014. O complemento dele é “Contaminação química dos recursos hídricos e o modelo agroalimentar”. Estávamos em plena crise hídrica severa no estado de São Paulo e os estudos da qualidade de nossas águas já revelavam que a contaminação por substâncias tóxicas vinha crescendo. Entre os contaminantes encontrados, naquele momento e hoje, os venenos agrícolas seguem marcando presença qualitativa e quantitativamente, com índices de resíduos que, mesmo quando estão dentro dos limites aceitos no país, são extremamente preocupantes. É que aqui permitimos resíduos em quantidade muito maior que na União Europeia, por exemplo, chegando a milhares de vezes mais, como é o caso do Glifosato, agrotóxico mais usado aqui e no mundo. Seu limite aqui é 5 mil vezes o adotado pela UE.

No texto, eu trago uma questão simples: o que ocorre quando a chuva cai sobre uma plantação que foi “destratada” com agro-venenos? Eis nosso caldo tóxico se infiltrando na terra e entrando com tudo na cadeia alimentar. Hoje, diante da situação de dilúvios monstruosos se tornando, possivelmente, o novo normal, a pergunta poderia ser: o que acontece quando uma enchente atinge imensas monoculturas envenenadas? O nosso caldo tóxico não conhece fronteiras e não ficará restrito às áreas pertencentes a quem jogou o veneno nas plantações. Ele escoa e invade florestas, povoados, cidades.

Em relação ao cenário no RS, há vários alertas para a gravidade da crise sanitária que a invasão das águas na região de Porto Alegre pode gerar. De fato, leptospirose e dengue, entre outras, são doenças que tendem a fazer mais vítimas em um ambiente em que não é possível evitar o contato com áreas alagadas ou higienizar adequadamente o que se ingere. A sobrecarga do sistema de saúde já é dada como certa pelos profissionais do setor, mas quase não ouvimos alertas sobre as substâncias tóxicas, escoadas de campos em que se pratica a agricultura convencional, e os danos que podem causar à saúde da população.

Não há nenhuma dúvida de que os venenos agrícolas são danosos para os seres vivos, incluindo seres humanos. Se quiser conferir, consulte o Dossiê Abrasco: Um Alerta Sobre Os Impactos dos Agrotóxicos na Saúde e navegue pelas 600 páginas de conteúdo científico sobre o assunto. Mas, apesar do que os pesquisadores e a própria realidade mostram, o negacionismo do Ogronegócio quanto à tragédia sanitária gerada pelo uso de seus venenos segue firme, propagando suas falácias na mídia comercial com a grana que o latifúndio agroexportador suga do país. Esse negacionismo faz parte do mesmo pacote negacionista que inclui o negacionismo climático e nega tudo o que for dito pela ciência (ou manifestado dolorosamente pela natureza) que possa atrapalhar a maximização dos lucros da elite econômica.

A demonstração cabal dessa recusa em reconhecer o que está escancarado pelos índices de contaminação ambiental e de distúrbios da saúde se deu com a derrubada de vetos que Lula havia feito no Pacote do Veneno, nova lei que regulamenta os agrotóxicos no país. A Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida (CPCAPV) divulgou uma nota sobre o que significa a derrubada dos vetos. Formada por um sólido conjunto de organizações populares e acadêmicas, ela vem lutando para impedir a destruição das normas que ainda oferecem proteção em relação ao agro-venenos, mas os parlamentares da bancada ruralista se fazem de surdos quando se trata de ouvir as vozes da comunidade científica e dos movimentos sociais.

Assim, nossa atenção volta-se para o poder executivo e o esforço agora é para destravar o PRONARA – Programa Nacional de Redução de Agrotóxicos. Ele foi aprovado há cerca de 10 anos atrás, ainda no governo Dilma, mas entrou na mesma gaveta em que todas as políticas públicas progressistas entraram ao decorrer do golpe de 2016. Já passou da hora de o implantarmos, fazendo com que um conjunto de medidas entre em vigência para fomentar a transição agroecológica e fechar as comportas escancaradas por onde fluem os venenos. Convidamos as organizações que partilhem dessa intenção a assinar o manifesto que a CPCAPV elaborou em apoio ao programa, reivindicando que seja publicado, ainda neste ano, pela atual administração federal.

Voto apocalíptico ou voto na esperança 

Uma pesquisa feita pelo The Guardian com centenas de cientistas climáticos reconhecidos mundialmente revelou o que acham que as pessoas deveriam fazer para combater o aquecimento do planeta. A ação considerada mais eficaz, apontada por 76% deles, é o voto em pessoas comprometidas com uma agenda pró ambiente. Outras atitudes, como reduzir os vôos de avião e o consumo de carne, complementam as recomendações, mas a mensagem é nítida: não há solução individual.

Você se esforça para manter um quintalzinho verde em meio à ilha de calor formada pelo concreto da cidade e evitar comer o bife que levou milhares de litros de água para chegar ao prato, mas um só fazendeiro sedento por grana resolve “investir” 25 milhões de reais em agrovenenos ultra tóxicos para desmatar uma área de 80 mil hectares de vegetação nativa na região do Pantanal brasileiro. Pronto, seu esforço é engolido por um sistema em que pessoas como ele acreditam que a natureza pode ser destruída em função de um projeto de país em que nosso papel no mundo é ser um grande fornecedor de commodities. Se a legislação e a aplicação da lei pela justiça, esferas coletivas, não garantirem a preservação ambiental, não há como frear o apocalipse climático.

Portanto, a questão, como todas as que dizem respeito à coletividade, é política – e precisa ser enfrentada como tal. Não dá para achar que cada indivíduo pode fazer a sua parte, fechando a torneira ao escovar os dentes ou fazendo uma doação para os desabrigados do RS – ou das tantas calamidades que ocorrem e ocorrerão cada vez mais – se seguir votando em quem não tem compromisso com a vida humana e com a vida dos demais seres animais e vegetais que compartilham conosco a existência aqui no planeta azul.

Enquanto a comoção reinava nas mídias e redes sociais, a bancada Ogra do Congresso derrubava justamente um veto do Pacote de Veneno que dá ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento a exclusividade na liberação dos agrotóxicos, destituindo o IBAMA, órgão do Ministério do Meio Ambiente, e a ANVISA, agência do Ministério da Saúde, dessa função. E a caixa de maldades segue aberta porque muitos ataques à legislação ambiental estão sendo feitos, ignorando o drama vivido pelas pessoas afetadas por enchentes, secas, doenças e por tudo mais que é agravado pela destruição dos ecossistemas.

Sim, é hora de doar a quem está em situação trágica. Sim, é sempre hora de evitar gastar muita água e muita energia, reduzir o consumo da carne, preferir transporte público… Mas o que já passou da hora é dar um pé na bunda dessa elite econômica sem escrúpulos, impedindo que seus representantes dominem os poderes executivos e legislativos. O instrumento para isso é, como os cientistas apontaram, o próprio voto, mas é também a batalha para que os votos das outras pessoas acompanhem o seu e sejam dados para candidatos e candidatas que já demonstraram que valorizam a vida e não se sujeitam às imposições de uma agenda ecocida – criada pelo capital para extrair, imediatamente, todos os bens da natureza enquanto for possível, legando terra inundada ou ressecada para a nossa e as futuras gerações.

Se você quiser ser parte da construção de uma sociedade mais resiliente frente aos efeitos do colapso climático-ambiental e, quem sabe, até mesmo evitar que ele siga se agravando, é essencial que entre na campanha para eleger representantes que não sejam ou não ajam como negacionistas (pois há muita gente que sabe bem da situação vivida e finge ser ignorante). Promover o debate nos territórios e contribuir para que as pessoas tenham consciência do que precisam fazer para reduzir as calamidades atuais e futuras, insuflando nelas a vontade de ser parte da solução e não do problema, é o melhor que cada um e cada uma de nós pode fazer agora e daqui para frente. Como ativista socioambiental desde que nasci, crescendo em meio aos comícios, manifestações e trabalhos com comunidades, posso garantir que, embora árduo, o caminho traz momentos de puro encantamento, gerando uma satisfação profunda que, tenho absoluta certeza, nenhum recorde de lucro ou aquisição de luxo pode gerar.

Sim, as águas nas áreas inundadas vão baixar. Mas, enquanto a pomba que soltarmos após cada dilúvio voltar, invariavelmente, com um raminho de soja envenenada no bico, ao invés de um raminho de uma planta da nossa biodiversidade, teremos que nos preparar para novos apocalipses, cada vez mais intensos. As eleições municipais vêm aí. Dê seu voto – e busque votos! – para quem ainda é capaz de alimentar nossas esperanças.

Susana Prizendt é arquiteta urbanista, integrante do Movimento Urbano de Agroecologia – MUDA e da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida