Inteligência artificial despolitizada é servidão artificial
Qual é o conceito de família que está programado dentro da IA? Qual é a ideia de família, de estado, que tem as programações em IA? Os textos produzidos pela IA são estereotipantes? Estigmatizantes? Conservadores nos costumes?
O ano de 2023 é o ano da gênese da Inteligência Artificial (IA). Utilizada há várias décadas, parece que existe um acordo comum para instaurá-la no imaginário da nossa sociedade de forma definitiva nesses tempos.
Se tem algo que aprendemos desde a Guerra Fria é que sociedades capitalistas produzem a tecnologia que resulta o interesse particular das suas classes dominantes. Em épocas de neoliberalismo, a IA se apresenta como uma ferramenta que acelera a produtividade ao passo que reduz custos e dispensa a qualificação técnica do seu usuário. A IA, hoje, oferece uma série de recursos técnicos para manipulação de imagem, outrora privativos para profissionais de alta capacitação técnica e, mais uma vez, esse novo avanço tecnológico se mostra como uma grande oportunidade de “democratização” de recursos, assim como alguma vez foi nos apresentada a internet, as redes sociais, a TV e por aí vai.
O mundo hoje é mais desigual, as redes sociais fortaleceram os discursos conservadores e fascistas e os setores populares parecem cada vez mais dificultados de se organizarem para retomar o protagonismo institucional.
O sonho da internet (um conceito despolitizado de internet) nos levar até à utopia de uma sociedade mais justa, acabou com manchetes de crianças sendo exploradas em países da África para fabricar baterias cada vez mais eficientes e pequenas para uma maior produção de smartphones, com toda uma geração atravessada por problemas de doenças mentais como ansiedade, Burnout e depressão e por um mundo que hoje ostenta uma concentração de renda ainda maior da que era uma década atrás. O perigo dessas tecnologias despolitizadas é justamente seus claros propósitos políticos: reduzir custos e acelerar a produtividade, ou seja, aumentar a exploração.
A princípio, a IA não passa de um grande banco de dados, (uma espécie de enciclopédia digital que se alimenta a todo momento para crescer de forma ilimitada) e administrada por um algoritmo de interpretação dos mesmos para produzir respostas a estímulos posteriores à sua programação.
Não é de estranhar que a IA tenha feito essa aparição triunfal anos após o surgimento das big data: esses grandes bancos de dados produzidos a partir de processos comportamentais de todos os usuários de redes sociais.
Essas big datas, que foram criados de forma clandestina e ilegal, foram fundamentais para produzir os chamados perfis psicografados. Essas empresas criaram perfis comuns de usuários, perfis estereotipados a partir de formas comportamentais que foram registradas com base na forma em que a gente se comporta na internet: os nossos likes, o tipo de informação que subimos às redes, os nossos comentários e reação às informações fornecidas pela rede. Esses perfis psicografados foram utilizados de forma clandestina e ilegal, mais uma vez, por agências de comunicação em campanhas eleitorais de candidatos de direita.
O caso mais conhecido é o das eleições nos Estados Unidos vencidas por Donald Trump. O segundo caso conhecido é o do Brasil nas eleições de 2018, vencidas por Jair Bolsonaro, ajudado pela equipe de comunicação de Trump durante o processo de campanha eleitoral. Uma campanha baseada em fake news e em informações falsas destinadas a produzir shocks de pânico (a ideia de uma família tradicional ameaçada pelo avanço de um comunismo LGBTQIAPN+ com o propósito de perverter os valores cristãos de moral).
No sentido técnico, a IA seria comparável a um administrador servil (robotizado) de uma grande enciclopédia de dados. E é aqui que mora a grande armadilha corporativa.
Nascida no berço de um mundo tomado pelo pensamento neoliberal (onde o estado e os setores populares são o grande inimigo da raça escolhida formada por “empreendedores e toda atividade privada”) não podemos esperar da IA mais do que uma reprodução ad infinitum do processo produtivo capitalista. Utilizada dentro do âmbito da redação publicitária, do jornalismo, a ferramenta de produção textual da IA irá produzir textos que questionem o sistema que a criou? Seria justa chamá-la de inteligência nesse caso?
Qual é o conceito de família que está programado dentro da IA? Qual é a ideia de família, de estado, que tem as programações em IA? Os textos produzidos pela IA são estereotipantes? Estigmatizantes? Conservadores nos costumes? A IA reproduz o racismo? O machismo? O preconceito religioso?
Esvaziada do seu contexto político de produção, é de esperar que a IA ofereça sim uma democratização do conhecimento. Um acesso antes vedado a processos de produção e execução (mesmo quando sejam desconhecidos seus mecanismos internos de funcionamento).
Porém, assim como aconteceu com a internet e redes sociais, as chances da IA contribuir com a concentração de renda, com a criação de mega corporações de tecnologia são tão altas que esse estrondoso surgimento dela tem tido pouca recepção em setores progressistas no campo social.
A experiência da internet, e logo das redes sociais, tem furado nosso otimismo. Esse enorme e voraz algoritmo que se alimenta de nós mesmos, que se apropriou da nossa intelectualidade para acelerar a produtividade, tem uma potencialidade enorme de reforçar os mecanismos de opressão dentro do campo simbólico, além de concentrar renda, de reproduzir estereótipos, de ajudar a congelar o avanço em questões de direitos individuais dos setores marginalizados.
A organização dos setores populares, a apropriação dessa e todas as tecnologias com um propósito claro e inquestionável de suprimir as desigualdades sociais, fora de toda tentativa corporativista e reacionária, é fundamental para que a IA seja sim, uma ferramenta que sirva aos desígnios da humanidade que a criou e da qual se alimenta, há décadas, dia após dia.