Impeachment de Trump: quando eles que são brancos não se entendem
Como bem escreveu o vencedor do Pullitzer Chris Hedges, um eventual impeachment de Donald Trump não muda grande coisa: não tira o dinheiro corporativo da política, não reverte a vigilância maciça da população pelo estado policial, não enfrenta a cultura de violência das instituições, não restaura a democracia.
Como bem escreveu o vencedor do Pullitzer Chris Hedges, no site TruthDig, um eventual impeachment de Donald Trump não muda grande coisa: não tira o dinheiro corporativo da política, não reverte a vigilância maciça da população pelo estado policial, não enfrenta a cultura de violência das instituições, não restaura a democracia. Se muito, cria o cenário para uma guerra civil, como o próprio presidente vem ameaçando no Twitter, sua arena política de facto.
Quando um sujeito como esse está à beira do abismo é o dever de qualquer um que preze pelo bom-senso empurrá-lo. Afinal, alguém que inspira assassinatos, prolifera todo tipo de preconceito conhecido pela humanidade e envia crianças para morrer em campos de concentração não merece um caixote de laranja e um megafone pra gritar na rua, que dirá as principais tribunas do planeta. Mas não podemos confundir o possível impeachment de Donald Trump com uma movimentação popular. É isso que ela precisa se tornar. Mas, por enquanto, a abertura do processo pela líder da minoria democrata no Congresso dos Estados Unidos, Nancy Pelosi, é um jogo de elites.
Trump mexeu no único vespeiro que não se toca quando se ocupa o cargo de maior poder no planeta: a identidade de classe. O presidente dos Estados Unidos é réu-confesso num caso de espionagem internacional. Ele confirma ter pedido “um favor” ao chefe ucraniano, Volodymyr Zelenskiy, aparentemente em troca da liberação de US$ 400 milhões em ajuda militar: que investigasse os grandes negócios da família do ex-vice presidente democrata Joe Biden na Ucrânia. Claro que onde tem grande negócio e família, tem corrupção. O próprio Trump que o diga. Nada, além do sobrenome famoso, impulsionou tanto os negócios de seus filhos quanto o controle da Casa Branca.
Defenestrar Joe Biden é o caminho trumpista para polarizar a disputa e concentrar a elite político-econômica dos Estados Unidos em torno de seu nome, ao mesmo tempo em que reforça o caráter antissistêmcio que o alçou à presidência
Biden, como Hillary Clinton em 2016, tenta a árdua manobra retórica de se apresentar como o candidato da volta à normalidade e à responsabilidade institucional, num momento em que o mundo quer que a normalidade se exploda. Figura tarimbada de Washington, o ex-VP busca a nomeação no partido contra a estrela do chamado socialismo democrático (rebrand da social-democracia), Bernie Sanders, e outra candidata à esquerda, Elizabeth Warren, que tem se aproximado dos Clinton para tentar se fazer palatável ao establishment. Os três estão praticamente empatados no voto popular. Mas nos Estados Unidos, o povo é secundário; quem decide eleição são os superdoadores e superdelegados.
E essas forças poderosas têm terror de uma candidatura à esquerda, que pregue pautas como o New Deal verde (que nada mais é do que uma transição ecológica de bases capitalistas) ou a universalização do sistema de saúde. Elas deixaram isso claro nas últimas presidenciais, quando apostaram no teto-de-vidro de Clinton contra o movimento de Sanders, que poderia colocar o partido democrata na disputa como uma força de mudança e não de continuidade. Muito mais do que a possível, provável, mas não comprovada ingerência russa, essa escolha pela conservação da democracia de baixa intensidade num momento de tsunami político-ideológico selou a entrega da Casa Branca para o trumpismo.
Trump sabe que, desta vez, o delivery seria ainda mais simples. Uma aposta ousada do Partido Democrata – cuja única centelha de revitalização tem sido à esquerda, com figuras como o próprio Sanders, Alexandra Ocasio-Cortez ou Ilhan Omar – faria o exército de doadores corporativos simplesmente tapar o nariz e apoiar a reeleição. Ou seja, defenestrar Joe Biden é o caminho trumpista para polarizar a disputa e concentrar a elite político-econômica dos Estados Unidos em torno de seu nome, ao mesmo tempo em que reforça o caráter antissistêmcio que o alçou à presidência.
Afinal, Joe Biden, como os Clinton, é a encarnação da porta giratória entre Washington e Wall Street, que tem governado a política americana há décadas e levado ao desempoderamento moral e econômico do cidadão comum. Ao atacá-lo abertamente, Trump, que é o status quo, ataca o status quo. E com a retórica que lhe é particular: depois de anunciada a abertura do processo de impeachment, o presidente não só reforçou o pedido de investigação à Ucrânia, como disse que a China deveria fazer o mesmo.
O tiro foi calculado. Nesta semana, uma delegação chinesa visita Washington para tentar buscar uma saída diplomática para a guerra comercial em que os dois países se encontram desde a chegada de Trump ao poder. Agora, qualquer acordo atingido com os chineses será suspeito, sucitará investigações do campo democrata e atirará mais lenha à fogueira do impeachment. Isso é desvantagem para os negociadores americanos, mas um ás nas mãos dos chineses, que poderão utilizar a situação política interna como instrumento de pressão.
Para o próprio Trump, a vantagem deste tipo de movimento é que ele destroça o protocolo, descredibilizando todo o sistema. Diante da confissão de ingerência, do uso da ameaça como forma de governo, fica impossível acusar o presidente de ingerência e ameaça. Em um artigo publicado pelo New York Times na semana passada, a historiadora Kahtlyn Olmsted compara o atual processo de impeachment ao que levou à resignação de Richard Nixon, em 1974.
A dura tarefa de moralizar a amoralidade
Quando vieram à tona as suspeitas de que a administração do presidente republicano estava por trás da invasão da sede democrata no edifício Watergate, Nixon tentou de todas as formas possíveis distanciar-se do escândalo. Ele adulterou gravações que o ligavam ao caso, negou conhecimento da espionagem, atirou aliados aos leões. Como explica Olmsted, seu medo maior era que sua detestável personalidade privada ganhasse a arena pública. Ele temia ser exposto pelo que ele é. Isso determinou o roteiro do impeachment: gradualmente revelar as evidências de mentiras até que o público o enxergasse como um hipócrita, indigno do cargo. O processo de Bill Clinton, acusado de conduta sexual inadequada, seguiu a mesma linha de exposição gradual, já que o presidente iniciou o processo negando todas as acusações.
Com sua estratégia sincericida, Trump inverte o sinal. Expô-lo não servirá de nada – não há destruição de caráter que ele não tenha feito por conta própria, em intensidade e virulência muito maiores do que uma acusação de uso da presidência para benefício próprio pode ser capaz de alcançar. Afinal, que presidente não fez isso? Ser comandante do império não significa ser o bully do resto do planeta? Donald Trump pode argumentar que todo mundo que sentou na cadeira fez a mesma coisa, mas só ele teve a coragem de admitir.
Ele sabe que isso ressoaria com seu eleitorado mais fiel. Afinal, seria Trump, mais uma vez, dizendo o que os políticos de carreira não dizem. Seria o presidente exibindo, de novo, seu reality show da democracia, que deixa as portas da Casa Branca abertas para o cidadão comum espiar, por mais podre que seja. Trump não diz “sou uma boa pessoa”. Ele diz: pelo menos, deixo claro o quanto sou nojento. E isso libera o eleitorado para ser igualmente cruel. É este o poder que o público trumpista não quer perder para a correção política.
Quando o Partido Democrata abre o processo de impeachment para salvar Joe Biden, ele ataca essa cultura cosmética do trumpismo em nome do restabelecimento do business as usual, este mesmo business que destruiu a classe trabalhadora a ponto de ela parir um monstro como Donald Trump. Este processo de impeachment é o Partido Democrata olhando para trás. Ele aspira às eras Obama ou Clinton, quando havia normalidade de aparência e brutalidade na prática, e exala medo do remédio que, para a elite, é ainda mais amargo do que o fascismo: a democracia.
Se Sanders ou Warren vencem as primárias com seus programas de financiamento coletivo, o grande capital e as elites estabelecidas perdem poder sobre a política eleitoral. Mais do que isso, perdem a primazia do discurso thatcheriano de que “não há alternativa”, que admite que o sistema é pesado, opressor, violento e desempoderador. Mas não há alternativa. Dependendo da margem desta vitória, é possível que a população comece a fazer a pergunta que não tem resposta: para que serve a elite?
Se Trump está à beira do abismo, é nosso dever empurrá-lo. Só não se pode perder de perspectiva que Trump – como Bolsonaro, Orban, Modi, Duterte e demais monstros – é a consequência e não a causa do fracasso da democracia representativa liberal
É para evitar que essa pergunta emerja que a direita do Partido Democrata, até agora profundamente receosa de destituir o presidente, resolveu embarcar em um processo tão caro, política e institucionalmente. Não é porque Trump mente compulsivamente, não é porque estimula ódio racial, não é porque pregou a expulsão de quatro congressistas do território nacional, não é porque manteve seus negócios pessoais no cargo de presidente, contrariando a constituição, não é por suas declarações racistas e misóginas, não é sequer por ter sido cúmplice das orgias pedófilas do bilionário Jeff Epstein, que se suicidou na cadeia neste ano. Não é pela ameaça que ele causa à democracia, é porque ele ameaçou o acordo de cavalheiros da elite para manter controle rotativo sobre a democracia.
Como disse no começo, se Trump está à beira do abismo, é o dever de qualquer pessoa de bom-senso empurrá-lo. Só que não se pode perder de perspectiva que Trump – como Bolsonaro, Orban, Modi, Duterte e demais monstros – é o dejeto do fracasso da democracia representativa liberal. Ele não é a causa, é a consequência. E sua retirada pelas elites tradicionais serve para maquiar o colapso, como forma de não enfrentá-lo de frente. A elite do Partido Democrata está insatisfeita porque sua fatia do bolo corre riscos. Durante séculos, sobrou bolo para a elite inteira, independentemente de quem controlasse a faca.
Trump deseja o bolo inteiro. Quer sequestrar os financiadores adversários, inviabilizar o candidato elitista e forçar a sigla a se reinventar ou largar o jogo. Na cabeça do establishment, o fascismo já cumpriu sua missão: a economia está recuperada, nenhuma das agências de notação de risco foi destruída, o mundo inteiro implementa políticas de arrocho da classe trabalhadora, a farra financeira do andar de cima está mais viva do que nunca. É hora de voltar ao passado, à gestão normal do capitalismo. O problema é que não existe um passado para o qual voltar, já que até as elites foram tocadas pela desintegração social pós-crise de 2008. Ou teremos uma saída à esquerda, com a radicalização da democracia, ou o futuro é fascista. Trump já escolheu seu caminho. Resta às bases democráticas fazerem o mesmo e defenestrarem não apenas o sociopata no poder, mas o poder dos sociopatas, em todo o espectro político.