Homologar não é definir limites de Terra Indígena
Diferente do que muitos pensam, não é o decreto de homologação que define os limites de uma TI. O processo de demarcação começa pela criação, pela Funai, de um grupo de trabalho, e envolve diversas etapas.
Sexta-feira passada (28), encerrou-se a 19ª edição do Acampamento Terra Livre (ATL), que reuniu cerca de seis mil indígenas de todas as regiões do país, em Brasília. O presidente Lula compareceu ao encerramento e anunciou medidas importantes para os povos indígenas. O Conselho Nacional de Política Indigenista (CNPI) foi recriado para reunir os órgãos federais e o movimento indígena e articular ações de governo. Também foi instituído o Conselho Gestor da Política Nacional de Gestão Ambiental das Terras Indígenas (PNGATI), no Ministério dos Povos Indígenas.
Lula também assinou seis decretos, que homologam as demarcações das Terras Indígenas (TIs) Arara do Rio Amônia (AC), Uneiuxi (AM), Tremembé da Barra do Mundaú (CE), Kariri-Xocó (AL), Rio dos Índios (RS) e Avá-Canoeiro (GO). Pouco depois, foi anunciada a assinatura, pela presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, da portaria de identificação das TIs Sawré Bap’in, dos Munduruku, na região do Tapajós (PA), e Sete Salões (MG), do povo Krenak. Em abril, por meio de uma Medida Provisória, Lula já tinha destinado R$ 640 milhões para assistência emergencial aos Yanomami e, na sexta, anunciou mais R$ 12,3 milhões.
A relevância desses decretos vai além da quantidade, pois eles representam a retomada dos processos de demarcação das TIs, previstos na Constituição, mas paralisados há cinco anos. Cada um deles é especialmente importante, pois significa a conclusão, no âmbito administrativo, do procedimento demarcatório daquele território, essencial para as comunidades ocupantes e por elas esperado há décadas.
Delimitação
Porém, diferente do que muitos pensam, não é o decreto de homologação que define os limites de uma TI. O processo de demarcação tem várias etapas e começa pela criação, pela Funai, de um grupo de trabalho, coordenado por um antropólogo, para fazer os estudos necessários à identificação do território. Cabe ao presidente do órgão indigenista, por meio de portaria, aprovar a área identificada pelo grupo, como fez Joenia agora com as TIs Sawré Bap’in e Sete Salões.
Desde o início do processo administrativo, até a publicação da portaria de identificação no Diário Oficial da União (DOU), abre-se um prazo de 90 dias para contestações aos limites propostos para demarcação, que podem ser feitas por pessoas, empresas ou instituições. Em seguida, a Funai tem outro prazo, de 60 dias, para se manifestar sobre as eventuais contestações e, então, encaminhar o processo para o ministério responsável pela tomada de decisão política sobre os limites a serem demarcados.
Terceiros interessados, que tenham direitos afetados pela identificação da TI, têm o direito de contestar administrativamente os limites propostos após a sua oficialização. Caso não tenham o seu pleito reconhecido podem recorrer à Justiça. Mas não podem obstar, por outros meios, a continuidade do processo demarcatório e o reconhecimento do direito constitucional dos povos originários.
O Decreto 1.775/1996 atribuía ao ministro da Justiça a competência para decidir sobre esses limites, aprovando-os, rejeitando-os ou solicitando novas diligências à Funai. A Medida Provisória 1.154/23, que deverá ser votada em breve pelo Congresso, transfere essa competência ao novo Ministério dos Povos Indígenas.
É só após a decisão ministerial sobre os limites da área que a Funai pode providenciar a sua demarcação física, propriamente dita, com a colocação de marcos e placas de identificação e com o cercamento ou a abertura de picadas, conforme cada caso. Via de regra, a Funai contrata, por meio de licitação, empresas de engenharia para esse fim. É essa etapa, da demarcação física, que demanda maior investimento de recursos públicos. É nela, também, que é feita a digitalização do perímetro demarcado, que dá precisão ao memorial descritivo da área constante do decreto de homologação presidencial.
Sentido lógico
As etapas do processo demarcatório fazem sentido. A tomada de decisão política sobre os limites se dá em nível ministerial, acima da Funai, e sabendo-se de eventuais objeções, podendo consultar outros ministérios e o próprio presidente, se for o caso. Da mesma forma, faz sentido que a decisão política preceda o investimento na demarcação física, que resultaria em desperdício, caso os limites fossem posteriormente revistos. Também é lógico que o processo chegue às mãos do presidente com as pendências tratadas e o respaldo técnico cabível.
Não é mera formalidade a precisão das coordenadas geográficas do perímetro demarcado, que, muitas vezes, só pode ser assegurada in loco, durante a materialização dos limites. Não se trata só de aprimorar o ato presidencial, mas de evitar sobreposições e conflitos evitáveis após o registro da área na Secretaria de Patrimônio da União (SPU) e nos cartórios locais.
Desde o governo de transição, segundo fontes oficiais, havia 14 terras com demarcação física concluída. Essa informação gerou a expectativa de que um número correspondente de decretos de homologação expedidos.
Agora, fontes do governo alegaram que alguns desses processos ainda mantêm pendências formais e não teria havido tempo para a Casa Civil resolvê-las, mesmo com a demarcação física concluída. Esse órgão é o responsável por formular os textos de decretos a serem editados pelo presidente.
São as seguintes as oito terras que não tiveram editados os seus decretos de homologação: Potiguara de Monte-Mor (CE), Xukuru-Kariri (AL), Toldo Imbu (SC), Cacique Fontoura (MT), Aldeia Velha (BA), Rio Gregório (AC), Acapuri de Cima (AM) e Morro dos Cavalos (SC). Grupos oriundos dessas terras, presentes no ATL, protestaram contra a exclusão dos seus territórios.
Se houver motivos formais para a não homologação, logo estarão sanados e os decretos serão editados. Pode ser que se espere a conclusão, em junho, do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da questão do “marco temporal”. Segundo essa tese ruralista, só teriam direito às suas terras as populações indígenas que estivessem em sua posse ou em conflito por elas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.
Não se sabe exatamente o que aconteceu, mas outra informação que circulou, extraoficialmente, é que houve forte pressão política contra as oito homologações que não saíram, aliás, o que é comum acontecer nesses casos. Pode-se imaginar, para cada uma dessas áreas, quais seriam os interesses contrariados, mas não se sabe porque teriam sido tão convincentes.
Ficam várias questões em aberto. Quem convenceu o governo a sustar essas homologações? O Planalto sabe que a definição de limites dessas terras antecedeu as demarcações? Vai sentar em cima dos processos, prolongando conflitos e postergando soluções? Vai devolvê-los à Funai?
No ATL, Lula declarou que pretende demarcar todas as TIs com processos inconclusos até o final do mandato. Isso seria ótimo para o Brasil, fazendo justiça e ajudando a ordenar a ocupação do território, embora existam casos em análise no Judiciário ou relativos a grupos isolados, cuja solução não depende apenas da vontade do governo. Para se aproximar da meta, Lula precisa avisar seus subordinados que não vale sentar em cima dos processos.