Hollywood versus Coronavírus. Entrevista de Christian Dunker e Alessandra Martins Parente
Quem sabe qual será a nova estratégia da máquina cultural norte-americana chamada Hollywood agora que definitivamente EUA não é o protagonista forte, poderoso e determinante na luta contra essa tragédia mundial de saúde que é o coronavírus?
Quem sabe qual será a nova estratégia da máquina cultural norte-americana chamada Hollywood agora que definitivamente EUA não é o protagonista forte, poderoso e determinante na luta contra essa tragédia mundial de saúde que é o coronavírus? Será que os roteiristas serão forçados a se render ante a realidade que mostra Cuba enviando equipes médicas em missão solidária a todos os cantos do planeta? Será que o protagonismo chinês, já não como agente conspirador e sim como potência reguladora do mercado, será considerado pela fábrica de cinema do país norte-americano?
Os filmes oferecem cartografias de notável precisão para diagnosticar o caráter psico político, cultural e sociológico de uma sociedade em uma determinada época. Segundo o filósofo e teórico cultural norte-americano Douglas Kellner, nos anos 2000, uma série de filmes hollywoodianos retratou catástrofes apocalípticas variando de desastres ambientais a cataclismos sociopolíticos nas formas de entretenimento de gêneros e filmes populares. O viés propagandístico desse filmes era alimentar o imaginário de que EUA é uma nação escolhida para ser a guardiã do mundo.
Kernell afirma que é nos momentos de maior diversão quando as pessoas mais facilmente absorvem ideologias. Essa seria a razão pela qual a cultura de massas produzida e veiculada pelas corporações de mídia tornou-se uma poderosa força dominante de socialização, identificação e formação ideológica.
Desde a instauração dos EUA como pólo dominante no período de pós Segunda Guerra Mundial, iniciou-se uma batalha cultural em que os Estados Unidos não economizaram investimentos na sua maquinária cinematográfica mundialmente conhecida como Hollywood. Com o fim da Guerra Fria, Estados Unidos se torna potência dominante num mundo unipolar, e com o avanço nas telecomunicações os indivíduos são submetidos a um fluxo sem precedentes, de imagens e sons dentro de sua própria casa; novos mundos virtuais de entretenimento, informação, sexo e política estão ordenando percepções de espaço, de tempo e anulando distinções entre realidade e representação.
Sem dúvidas, Hollywood é a máquina propagandística mais potente que o país do norte tem utilizado para levar em diante seu propósito de ser intitulado como a “nação escolhida”. Em sua análise do filme “Top Gun”, Kellner coloca o filme na fila de outros que têm o propósito de mobilizar uma série de representações culturais para conseguir o apoio a nível global da guerra que Bush estava iniciando no Oriente Médio. O filme celebra o heroísmo individualista, o denodo militar e os valores americanos conservadores. Assim como outros, o filme opera num universo binário de luta entre o bem e mal, no qual o inimigo é absolutamente mau e os norte-americanos representam a personificação da bondade. “Top Gun trata principalmente de competição e vitória: mulheres, honra militar, esportes e sucesso social” (Douglas Kernell, A Cultura da Mídia, 2001).
Quando perguntada pelas consequências culturais e políticas do cinema de Hollywood em sociedades fora dos EUA, Alessandra Parente, psicanalista, doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade de São Paulo, onde também se formou em filosofia, responde: “Essa análise minuciosa já foi feita por Theodor Adorno e Max Horkheimer depois da Segunda Guerra Mundial quando ambos estiveram nos EUA e escreveram a Dialética do Esclarecimento. O conceito de Indústria Cultural, cunhado e destrinchado pelos frankfurtianos, demonstra o viés totalitário da sociedade americana. [..] Como o projeto americano é claramente imperialista, a Indústria Cultural serve como máquina de guerra ideológica contra tentativas de oferecer outros modelos possíveis de sociedade ou contra formas de resistência – daí que no campo da Indústria Cultural haja sempre a dicotomia entre o bem e mal, o forte e o fraco, o mocinho e o vilão e assim sucessivamente.
O lado americano sempre é aquele que convoca uma identificação empática por parte do espectador. Há passagens da Dialética do Esclarecimento assustadoramente atuais. Por muito tempo, criticaram-se esses dois filósofos por serem tão contundentes e descartarem quase tudo – Adorno revê certas posições ali colocadas sobre cinema mais tarde – sob uma leitura crítica aparentemente unívoca. Walter Benjamin, por exemplo, reconhecia, ao contrário do que fazem Adorno e Horkheimer, alguns ganhos perceptivos com a advento do cinema. Mas acho que hoje, infelizmente, temos que conceder mais crédito aos dois velhos ranzinzas. Um trecho, entre tantos outros, que salta aos olhos de um leitor atual é o seguinte:
Hoje em dia as massas logradas sucumbem mais facilmente ao mito do sucesso do que os bem-sucedidos. Elas têm os desejos deles. Obstinadamente, insistem na ideologia que as escraviza. O amor funesto do povo pelo mal que a ele se faz chega a se antecipar à astúcia das instâncias de controle. Ele chega a superar o rigorismo do Hays-Office[i], quando este, nos grandes momentos históricos, incitou contra o povo instâncias mais altas como o terror dos tribunais. (Adorno e Horkheimer, [1969] 1985: 125)
De qualquer modo, há filmes oriundos da indústria americana que também conseguem burlar essa lógica de consagração da ideologia americana. Os exemplos são muitos. Queria destacar um filme da década de 1980 que é extremamente potente e atual: “Eles vivem” do cineasta John Carpenter. Mas, claro, poderia citar muitos outros. Tenho a impressão de que essa ideologia está presente, mas que a crítica a ela também acaba sendo engolida pelos sistemas de distribuição, de propaganda, de mercado. Em geral, os filmes são obrigados a se renderem ao modelo de mercado para que o filme exista – isso o fortalece como obra de arte, mas o enfraquece como forma de resistência ao establishment capitalista. “Parasita”, o filme coreano, é um ótimo exemplo: ele adquire força ao ganhar o Oscar ou a crítica feita no filme entra como parte de um léxico aceitável no mercado que orienta a Indústria Cultural. Não sei dizer.
Então, voltando à sua questão, não são apenas os filmes hollywoodianos – até mesmo Brecht foi à Hollywood – que promovem a ideologia americana mundo afora. Esses filmes existem e são, em geral, ruins. Qualquer pessoa mais atenta é capaz de perceber o viés propagandístico em sua forma e em seus conteúdos. Entretanto, o problema maior é que até mesmo os bons filmes – americanos ou não – são compelidos a aceitar uma maquinaria de distribuição e propaganda que os coloca dentro de um modelo de funcionamento capitalista americano próprio da Indústria Cultural. Acho que aí tem um certo enrosco. Do ponto de vista da subjetividade, de uma psicologia social, brindamos a vitória de “Parasita” como obra de arte e ficamos apaziguados em relação ao que o filme traz como convocação profunda de transformação social.”
[i] Código de censura instituído em 1934 pela indústria cinematográfica de Hollywood.
Viradas nas narrativas
“A trincheiras das ideias valem ainda mais que as trincheiras de pedra” é uma frase escrita pelo escritor cubano José Marti no livro “Nuestra América”. O imperialismo americano precisou desenvolver a imagem “paternalista” do guardião global. A construção do personagem do presidente americano, homem, pai de família heterossexual, seguro de princípios e valores cristão-conservadores, tornou-se recorrente nos roteiros de catástrofes naturais, intrigas terroristas, ficção científica e todos os gêneros possíveis que o cinema hollywodiano tratou, colocando EUA dentro de uma trama de crise mundial a causa de inimigos internos ou externos.
Na questão racial, presidentes negros estão invariavelmente associados a personagens cômicos ou a tragédias planetárias, o que levou o humorista Jon Stewart, durante a última cerimônia do Oscar, a dizer que, “normalmente, quando se vê um homem negro ou uma mulher como presidente, um asteróide está prestes a atingir a Estátua da Liberdade”. Em O Presidente Negro (The Man), lançado em 1972, um desastre mata o presidente da República e o presidente do Congresso, o vice recusa o cargo por problemas de saúde e cabe ao presidente do Senado assumir relutantemente o cargo. Interpretado por James Earl Jones, Douglas Dilman se torna o primeiro negro a ocupar o cargo.
Em Impacto profundo, filme-catástrofe lançado há 10 anos, o “presidente” Morgan Freeman tem de decidir o que fazer quando um enorme meteoro ameaça dizimar a civilização. Nesse sentido poderia se dizer que Hollywood serviu para ir “semeando o terreno”, preparando a sociedade norte americana diante da possibilidade de ter um presidente negro, o que acabou acontecendo finalmente com a posse de Barack Obama. Hollywood, mais uma vez, vai moldando a cabeça e o coração do espectador cidadão. Não esqueçamos nunca que política é um ato intelectual e afetivo. E é no plano dos afetos, das emoções, onde o cinema influencia de modo mais contundente. Quem não se viu quase que forçado a chorar diante de aqueles recorrentes discursos moralistas dos filmes nacionalistas americanos? Com a trilha sonora sugestiva e as graves expressões dos figurantes e os atores de segunda ordem?
Para Christian Dunker, psicanalista e professor titular da Universidade de São Paulo, o cinema americano sofreu duas viradas recentes, quando observamos o modo de produção, financiamento e distribuição, bem como as transformações do público consumidor. A primeira virada acontece depois de 1989 e ela se orienta para a redefinição narrativa das oposições constitutivas da trama. Isso envolveu, basicamente a busca de novos inimigos, seja no oriente médio, seja nos focos de resistência hegemônica dos falcões. Lembremos também que é um momento no qual os diretores começam a tomar contato com certas restrições discursivas de casting e dramaturgia, que visavam acomodar os novos movimentos de resistência cultural emergentes na esteira do fim das grandes narrativas teológico-políticas, cujo epicentro ideológico era o comunismo. Maior presença de homossexuais, em papéis menos caricatos, heroínas e diversificação da presença de negros, por exemplo, a advertência de que estes eram sempre os primeiros a morrer, nos filmes de ação, acionou um código pós-moderno que se encontrou na origem da expressão, depois revertida pela direita como politicamente correto. Nesta virada temos uma série de filmes que redescobrem o poder das catástrofes naturais para designar o lugar perturbador do inimigo. Nestes filmes, vigora ainda um resto sintomático do antigo star-system, ou seja, no final a família sempre vence e de preferência o pai herói a representa.
A segunda virada neste sistema ideológico acontece depois de 2008, com a crise do neoliberalismo e a entrada concorrencial dos sistemas de streaming e a consequente redução de custos de produção. O inimigo agora se interioriza, assim como precisa ser deformado na sua apresentação: em vez de imigrantes indesejáveis, zumbis em errâncias do tipo walking deads, tipicamente pessoas sem família, sem voz e que se repetem automaticamente na busca de corpos alheios. Eles são antípodas da família, mais porque a forçam ao movimento de recolhimento e resistência do que por uma ameaça externa. A segunda figura ideológica deste período são os filmes de ação com super-heróis que vivem em uma espécie de família comunitária, mais ou menos ampliada. Aqui preserva-se o lugar do pai, Dr. Xavier, por exemplo. Os inimigos ainda tem rosto, mas eles vão gradativamente se naturalizando. Curinga parece ter marcado o encerramento deste ciclo ideológico com a formação de um herói interiorizado e dividido, mas ainda assim capaz de inspirar um horizonte de redenção e epifania, gerado na desordem. A terceira figura da negação do conflito e reprodução das relações de poder é naturalmente a série de filmes sobre epidemias e sobreviventes, dele a série Saw até todos os mimetismos de jogos de eliminação, com destaque para Resident Evil, uma marca na integração da ideologia cinematográfica com o universo dos videogames. Aqui fomos nos acostumando com a necropolítica, ou seja, as vidas matáveis, desumanizadas, pós-humanas, que atacam a família e degeneram no indivíduo solitário e sobrevivente.
A epidemia do Novo Coronavírus chega, portanto, neste caldo ideológico de reação e escombros do neoliberalismo na economia e do pós-modernismo na cultura. Ela antecipa a noção de refúgio domiciliar, na esteira do trabalho domiciliar, previamente precarizado. Ele antecipa a xenofobia que deverá seguir-se a incerteza sobre os contaminados. Ele antecipa também a lógica da contabilidade de mortes sentidas como inevitáveis, anônimas e sem sentido. Tudo levaria a crer que Holywood seguiria seu padrão de defesa nacional, com reificação de heróis super-naturais, mas desta vez temos Trump como uma espécie de adversário interno, que colocará a narrativa do desastre americano perto demais para não ser pensada como uma crise de identidade”.
Uma nova era?
Quem sabe qual será a nova estratégia da máquina cultural norte americana chamada Hollywood agora que definitivamente EUA não é o protagonista forte, poderoso e determinante na luta contra essa tragédia mundial de saúde que é o coronavírus? Será que os roteiristas serão forçados a se render ante a realidade que mostra Cuba enviando equipes médicas em missão solidária a todos os cantos do planeta? Será que a China vai deixar de ser esse monstro gigante querendo perverter o mundo com seu maoismo, e derrubar igrejas e sexualizar a imaculada sociedade cristã e capitalista ocidental? Até que ponto não é nosso dever cidadão revitalizar as disputas pelos espaços de exibição de filmes, hoje monopolizados por uma maquinaria de produção cultural estrangeira, e colocar no debate das ideias, de forma séria e profunda, temas como racismo, patriarcado, políticas públicas, direitos humanos? Quanto temos pecado em aceitar de forma acrítica esse conceito de “indústria do entretenimento” que molda nossas vidas e banaliza nosso tempo de ócio? A tragédia do coronavírus mostra a extrema necessidade de batalhar em todos os campos, incluindo no campo das ideias (e talvez muito mais que em qualquer outro lugar), se realmente queremos para nossos filhos uma sociedade mais igualitária, mais preparada para resistir de forma coletiva ante qualquer cenário de crise por causa de fatores externos ou de inerentes vícios internos.