Greve dos caminhoneiros e povo sem alimento: somos reféns do agronegócio
Há um desabastecimento de alimentos, morte de animais, uma crise sem precedentes em todas as esferas do sistema agroalimentar.
Para responder a isso, temos primeiro que buscar entender como esta o abastecimento alimentar no Brasil: Qual é o modelo agroalimentar implementado no Brasil?
Como se produzem os alimentos? O que é produzido no campo brasileiro?
1.1 Na produção temos basicamente três formas, a produção empresarial de grande porte (agronegócio) destinado basicamente à produção de soja, milho, cana, celulose e criação extensiva de gado, a produção familiar integrada diretamente às cadeias do agronegócio e a agricultura camponesa com suas diversas formas e identidades pelo Brasil profundo afora. 70% dos alimentos que vão à mesa da população são produzidos pela agricultura camponesa, porém, a chegada deste alimento é mediada pelas cadeias de supermercados e agentes atravessadores da produção que se impõem sobre os camponeses.
1.2 produção efetivada pelo agronegócio e pelo setor familiar integrado às cadeias produtivas busca exclusivamente melhores taxas de lucro, não há um compromisso social com a produção de alimentos, não há uma conexão entre produção e consumo, desta forma planta-se e cria-se aquilo em que há maiores perspectivas de lucro ou maiores garantias de renda, como interessa à política econômica adotada a exportação de commodities agrícolas essas são protegidas e incentivadas em detrimento de uma política de produção de alimentos para abastecimento interno. Isto não é novo, é desde a primeira lavoura de cana no século XVI. O abastecimento interno é garantido pela agricultura camponesa, teimosa, resistente que se nutre de uma utopia lhe conservando a capacidade de produção de alimentos. Havendo déficit de algum produto busca-se no mercado externo, sendo também uma importante fonte de abastecimento alimentar as importações.
É um contrassenso, um país de dimensões continentais, imensa área territorial agricultável, exportador de matérias primas agrícolas ter que importar alimentos para garantir o abastecimento, isso demonstra que o abastecimento interno se dá ao acaso, não há uma política estruturante, uma primeira elaboração de um Plano Nacional de Abastecimento foi destruído antes de ser implementado pela ditadura militar em 1964.
1.3 a divisão territorial da produção brasileira segue as leis gerais do capital, especialização, escala, aumento de composição orgânica, etc, com finalidade exclusiva de auferir maiores taxas de lucro, é esta política que colocou a produção de arroz brasileira no Rio Grande do Sul, a carne bovina no Norte, os grãos no centro-oeste, suínos, aves e lácteos no centro sul. Esta forma de produção se mostra intensiva em insumos externos à unidade de produção, petrodependente e desconectado das demandas de consumo local. Fugir ou contrapor-se a essa divisão significa estar fora do mercado, dificultando a geração de renda e a reprodução da família, assim o agronegócio impõe à agricultura camponesa a sua lógica de produção e abastecimento, contudo, há, e em grandes dimensões resistências.
Qual é o alimento? Qual a proposta de alimentação?
Podemos segmentar brevemente em quatro processos a alimentação, o primeiro seria o consumo de massas baseado em imitação de alimento, ou seja, produtos ultraprocessados com aspecto, cheiro e consistência de alimento, mas que efetivamente carecem de minerais, vitaminas, fibras, valores culturais e sentido histórico, portanto, não alimentam, saciam a fome e derramam nos organismos grandes quantidades de açúcar, gorduras saturadas, sódio, e aditivos químicos que ao invés de nutrir e promover saúde geram obesidade associada com anemia e uma série de doenças crônico não transmissíveis. Esse mercado de massa se abastece de soja e milho processados sob diferentes formas. Afirmamos que nos dias atuais a carne em grande medida é um processado de soja e milho.
O segundo é o quadro de escassez e fome em que sequer esta ração, ou imitação de alimento está acessível. Discute-se o que fazer e são colocados em prática políticas de exterminação em massa.
O terceiro é o gourmet, o mercado de orgânicos, que estão direcionados à uma pequena parcela da população, a elite econômica e política que dispõem dos recursos para consumir este tipo de produção, produzida especificamente para esta elite alegando-se a impossibilidade de produção em massa de alimentos reais.
Estes três primeiros são processos públicos e legais, no sentido de cumprirem uma formalidade jurídica destinada justamente a conformar nesta lógica a produção e o abastecimento alimentar.
A quarta forma se dá nos cantos e periferias da sociedade, uma agricultura de “subsistência” que alimenta diretamente os seus 70 milhões de produtores, que abastece as tão perseguidas feiras livres das cidades do interior e também das grandes cidades, uma economia informal perseguida e combatida, justamente por fugir ao controle dos barões do alimento sediados nos topos das cadeias de supermercados, determinadores de preços ao produtor e consumidor. Esta quarta forma existe em ampla escala e é alvo de organização dos movimentos populares que pautam a soberania alimentar em oposição à segurança alimentar.
Por fim é importante considerar que esta forma de produção e abastecimento alimentar em escala global do qual Brasil é parte importante resultou numa migração em massa da população rural para as cidades, concentrando em uma pequena parcela do território nacional a maior parte da população, gerando por um lado imensos vazios populacionais no interior do país e grandes cidades completamente inviáveis, resultando num caos social permanente facilmente agudizado.
Minimamente caracterizado aspectos do sistema agroalimentar brasileiro (que é parte importante de um sistema agroalimentar mundial), podemos então avaliar como a greve dos caminhoneiros impacta este modelo:
Do ponto de vista da produção de alimentos e do abastecimento o que a greve dos caminhoneiros fez?
Interrompeu o fluxo de circulação de insumos-produtos, como a produção foi amplamente segmentada e fatiada ao longo do território nacional cada parcela de insumo-produto precisa viajar centenas ou milhares de quilômetros para chegar ao ponto de consumo (produtivo ou final), a interrupção desta circulação colapsa todo o sistema, interrompeu-se o transporte de ração, medicamentos, produtos químicos, combustíveis e produtos acabados, cada segmento entra em colapso, resultando nas manchetes que estamos vendo, pintos sendo mortos, porcos comendo porcos, leite sendo jogado fora…
Isso nos remete à algumas questões:
Pode um país de 200 milhões de pessoas ter um sistema de abastecimento alimentar tão frágil? Como em dois ou três dias há um desabastecimento, e a impossibilidade de seguir com a produção?
O governo não tem nenhum instrumento que possa dispor afim de garantir o abastecimento alimentar da população, isso demonstra uma vulnerabilidade imensa de um País, e explica o tamanho da subordinação a que estamos submetidos aos países centrais.
Estamos diante de um sistema agroalimentar que sua finalidade e gerar lucros e saciar a fome de acumulação de capital, quanto mais este modelo se aprofunda maior é a vulnerabilidade da população e a completa instabilidade do sistema.
Então estamos diante de uma situação em que ou não temos um sistema de abastecimento alimentar, ou o desabastecimento foi programado, foi premeditado com a finalidade de com o fantasma da fome e do desabastecimento de alimentos garantir que a população aceite a manutenção dos lucros da petrobras (transferidos de imediato para os acionistas estrangeiros em sua maioria), o corte nos gastos sociais, a isenção de impostos com a finalidade de garantir o lucro das transportadoras e manter o ambiente extremamente precarizado que convivem os caminhoneiros no Brasil.
Talvez podemos dizer que são as duas coisas. Porque podemos dizer isso?
A política neoliberal dos anos 90 desmontou a estrutura pública de estoques reguladores, os instrumentos públicos de gestão da produção alimentar, sucateou as estruturas de comercialização de alimentos. Ao mesmo tempo promoveu a concentração do setor varejista, a concentração da agroindústria, aumentou a dependência da importação de alimentos, priorizando, sobretudo ao final da década de 90 a produção de divisas através da exportação das commodities agrícolas.
Os governos progressistas do inicio do século XXI não conseguiram reverter esta lógica, não tivemos as condições de construir um plano de abastecimento alimentar, o Fome Zero tinha esta pretensão, mas foi suplantado por uma política focada nos mais pobres e destinada a garantir-lhes renda mínima para comprar alimentos neste sistema agroalimentar já referenciado, portanto, uma política de “enxugar gelo” pois acaba por fortalecer justamente um modelo de produção de alimentos excludente e gerador de pobreza no campo e na cidade. Porque não tivemos as condições é uma pergunta complexa que deve ser respondida considerando um conjunto de situações que vão da correlação de forças, à perspectiva de abastecimento alimentar hegemônica na esquerda brasileira que considera o modelo agroalimentar eficiente (alimentos para consumo de massa, orgânicos para a elite e renda mínima para aqueles que estão abaixo da linha da pobreza não passarem fome). É evidente que a conjuntura não foi fácil nos governos Lula e Dilma, mas é igualmente evidente que podíamos ter feito muito mais, se tivesse havido compreensão da importância estratégica de um sistema de abastecimento alimentar de controle popular.
O programa golpista, chamado de ponte para o futuro, no abastecimento alimentar restringiu a população capaz de acessar o mercado gourmet/orgânico, restringiu a população de acessar o mercado de massas, cuja restrição não foi maior, porque os preços dos alimentos reduziram nas prateleiras, segurando a inflação, mas as custas dos camponeses e dos trabalhadores agrícolas de maneira geral que sentiram a renda encolher fortemente no último período. Aumentou assim a população na situação de fome, na miséria e sem perspectiva de superar esta condição. É um quadro desolador.
Quais são os efeitos da greve dos caminhoneiros para o próximo período no abastecimento alimentar?
No setor de frutas e verduras os agricultores acumularam prejuízos, porém pela natureza da produção, basta retomar a circulação que estes produtos afluirão aos mercados, atingindo uma normalidade em um tempo breve. Mas no setor de carne e lácteos o estrago é grande, poderemos ter meses de desajuste no abastecimento, resultando muito provavelmente em elevação de preços ao consumidor. Mas uma questão pertinente é discutir como ficará com os prejuízos que cada agricultor esta tendo, em alguns casos são prejuízos que demandarão anos de trabalho para recuperar, pois os custos são altos e as margens apertadas, um lote de animais que se perde será necessário vários lotes para recuperar o prejuízo. A tendência é que as empresas joguem os custos para o consumidor ou para os trabalhadores, o Estado pode entrar como um refúgio, mas dado o nível de crise fiscal resultante de uma divida pública extorsiva e intocável há pouco espaço. Como garantir que não hajam revoltas populares pelo custo da conta? Uma solução autoritária, militar cai como uma luva.
Quais as lições deste processo? O que devíamos fazer para superar esse quadro?
Uma primeira lição importante é que pudemos ver nestes últimos dias a nossa enorme dependência do petróleo e é preciso romper com essa dependência seja pelo caos gerado pela sua falta, seja pelas consequências ambientais de seu uso. É preciso construir outro modelo de produção e circulação de alimentos que passe por circuitos curtos, sistemas camponeses de produção, práticas agroecológicas, cooperação territorial, conexão entre produção e consumo, produção energética descentralizada. Construir isto significa romper com o modelo agroalimentar atual, o que não se faz sem romper com a economia de mercado, ou para ser mais claro, com o modo de produção capitalista.
Uma segunda lição importante é a importância do petróleo, é um ativo estratégico para o país, logo percebemos o tamanho do assalto que estamos sofrendo com a entrega do pre-sal para as multinacionais, com a privatização fatiada da Petrobras, com a política neoliberal do Parente. Este governo golpista esta destruindo um ativo fundamental para a construção de um projeto de nação, nos colocando numa posição ainda mais subalterna e a deriva de interesses alheios. Consideramos que não é possível pensar Produção e distribuição de alimentos desligado do debate de combustíveis, Por isso temos defender uma Petrobras 100% Estatal e Pública, por isso nossa aliança com Petroleiros.
Uma terceira lição é que um País das dimensões do Brasil não pode ter tamanha dependência do modal de transporte rodoviário, um projeto de nação substantivo precisa considerar a necessidade de ampliar e diversificar o modal de transporte simultaneamente à redução da necessidade de transportes dos produtos, temos que transportar menos para abastecer mais, o que for transportar tem de ser melhor feito. Não é possível que a maioria das riquezas circulem sobre rodas conduzidas por motoristas vivendo em condições indignas e sub-humanas, por isso, nossa solidariedade aos caminhoneiros, e também nosso alerta, não é com uma saída autoritária que resolveremos nossos problemas.
A quarta lição é que é absolutamente estratégico e imperativo construirmos um sistema de abastecimento alimentar no País, remodelando a estrutura de produção, desbloqueando a agricultura camponesa, realizar a reforma agrária, alterar o modelo produtivo, desenvolver o abastecimento a partir de circuitos curtos e pensar o abastecimento em geral associado à uma infraestrutura de transportes: Ferroviário, seria necessário reconstruir o Sistema Nacional Ferroviário, saindo de Centros de Distribuição integrando as pequenas e médias cidades com as metrópoles; Sistema Nacional Hidroviário integrando Rios e Oceano; garantindo assim a condição de circulação dos alimentos. Ou seja, a esquerda precisa avançar no entendimento da importância estratégica deste tema, o império compreendeu, as corporações que dominam a política e a economia compreenderam que dominar a produção e o abastecimento alimentar é o meio mais eficaz de dominar um povo, construir o controle popular dos alimentos é tarefa estratégica na construção do projeto popular para o Brasil.
Por fim, o caos produzido não foi derivado da “falta de mercado”, ao contrário é derivado da entrega da economia e dos rumos do País ao neoliberalismo, aos que propagam que quanto mais mercado mais feliz será o povo. O que vimos acontecer nestes últimos dias é justamente o contrário. A custa do fantasma da fome, da preocupação das pessoas em comer, o capital enxerga possibilidade de lucro, e o governo é incapaz de fazer qualquer coisa, pois entregou algo fundamental que é o abastecimento integralmente ao mercado. quanto mais mercado, mais fome, mais exploração, mais lucro, e nos preparemos, pois a saída anunciada só aumenta o problema, corte de impostos significa menos gastos sociais, mais precarização no SUS, mais sucateamento das universidades, mais selvageria.
Portanto, temos que dizer claramente que a lógica capitalista de produção e distribuição não interessa ao povo, é necessário romper este modo de produção.
Entrevista com Raul Krauser – Dirigente Nacional do MPA