Ganância ou solidariedade: qual será o nosso destino?
Vivemos num país mega-diverso e mega-dividido. Fica difícil resumir um “caráter brasileiro” em poucas palavras. No meio dessa pandemia, uma crise sanitária que tem o dom de estagnar a economia e acirrar a política, uma dupla face representa os sentimentos mais profundos que emanam de brasileiros: ganância & solidariedade.
Vivemos num país mega-diverso e mega-dividido. Fica difícil resumir um “caráter brasileiro” em poucas palavras. No meio dessa pandemia, uma crise sanitária que tem o dom de estagnar a economia e acirrar a política, uma dupla face representa os sentimentos mais profundos que emanam de brasileiros: ganância & solidariedade.
Luciano Hang é dono da rede de lojas Havan. Com uma fortuna de R$ 8 bilhões, foi recém incluído na lista de bilionários brasileiros elaborada pela revista “Forbes”. Luciano tem pressionado empresários do varejo para, como ele, ameaçar o Governo com demissões, caso a política de isolamento social contra o coronavírus seja mantida.
O dono da rede de restaurantes Madero, Junior Durski, criticou as medidas restritivas à economia para evitar a explosão da epidemia do coronavírus no Brasil. Em um vídeo compartilhado no Instagram na segunda-feira (23), o empresário afirma que o número de mortes causadas pela doença não será tão grave quanto o de desempregos. Apoiador do governo de Jair Bolsonaro, Durski disse: “Agora vão morrer 5.000 pessoas por coronavírus que nós não podemos evitar. Não tem como fechar tudo, se esconder do inimigo e não trabalhar”.
Carlos Bolsonaro, filho 03, detonou a ajuda de R$ 600 aos trabalhadores informais pelo Congresso com o suposto endosso do governo, sublimando ideologicamente a ganância no Twitter: “O desenho é claro: partimos para o socialismo. Todos dependentes do estado até para comer, grandes empresas vão embora e o pequeno investidor não existe mais. Conseguem a passos largos fazer o que tentam desde antes de 1964…”.
Por sua vez, Alexandre Guerra, herdeiro e administrador da rede de lanchonetes Girafas, expressou assim a sua indignação com a restrição ao funcionamento do varejo: “O que a gente faz com as pessoas? A gente está pagando salário de qualquer forma. Você consegue se sustentar 90 dias sem faturamento? Você que está em casa já pensou que, ao invés de ficar com medo de pegar o vírus, deveria ficar com medo de perder o seu emprego?”. Seu pai, Carlos Guerra, dono da rede, o demitiu.
Com a fortuna que tem, Hang poderia manter todos as seus funcionários e os seus salários por alguns meses, mas pressiona o seu presidente contra a política de isolamento, indispensável para o funcionamento dos serviços de saúde e para conter o número de vítimas. Se a atitude cínica de Dursky prevalecer, os mortos poderão chegar às centenas de milhares. Provavelmente, Carlos prefere ver montanhas de cadáveres insepultos a aceitar a ideia de que o orçamento público sirva ao público ao menos num momento de desespero.
Alexandre poderia infectar milhares de funcionários e clientes, em vez de adaptar o seu negócio à crise para manter empregos e reduzir o seu prejuízo, mas ainda bem que o seu pai serve a outro Senhor. Ao punir o próprio filho, ensinou que a solidariedade tem que estar acima da ganância num momento dramático como este.
E aí, nessa outra banda – generosa – do caráter brasileiro, temos visto inúmeros exemplos de solidariedade se destacarem das agruras da crise. A começar pelo papel heróico e exemplar dos epidemiologistas e profissionais de saúde em geral, que representam todos os nossos corações no front principal dessa guerra. Mas também é hora de enaltecer a maioria do nosso povo que, apesar do nosso presidente, compreendeu e adotou o isolamento como única tática eficaz para essa guerra.
Vamos falar da solidariedade concreta com aqueles que estão impedidos, pelas circunstâncias, de obterem sua renda, seja pela atitude de cada um em relação a quem o circunda, seja pelo apoio a medidas dos governos para colocar dinheiro na mão de quem mais precisa. Isso não é comunismo, nem de dependência; trata-se de emergência. É acolhimento – e não exclusão – o que mais precisamos no momento.
O trabalho dos jornalistas e demais profissionais e redes de comunicação tem sido vital para informar as pessoas sobre riscos, cuidados e evolução da epidemia, sobre atos de solidariedade de outras pessoas e sobre as políticas em curso, permitindo que elas exerçam a sua cidadania mesmo em condições de isolamento físico.
A solidariedade é a essência da atitude dos artistas que cantam nas janelas, dos amores que persistem mesmo à distância, das mães e pais que estão por conta dos filhos e lhes ensinam sobre a situação inédita que vivemos. Conduz, também, os que fabricam máscaras, que fazem vaquinha para ajudar quem precisa, que batem panelas para expressar sua posição política sem contaminar ninguém e os que cuidam dos seus velhos, ameaçados de extinção pelos que não aceitam o encolhimento temporário da economia para preservar vidas. A solidariedade une as pessoas pelos corações.
Que a solidariedade siga sendo a marca mais forte da nossa atitude como povo. Vamos sair dessa crise decididos a fazer diferença para vivermos melhor em sociedade, numa homenagem à altura dos que não sobreviverão.