Festa de Iemanjá é um caleidoscópio de culturas
Iemanjá, para o povo de candomblé, é, “a mãe do mundo”. Portanto, não é estranho que em sua festa caiba um mundo de possibilidades e sensações.
Iemanjá, para o povo de candomblé, é, “a mãe do mundo”. Portanto, não é estranho que em sua festa caiba um mundo de possibilidades e sensações.
Aparentemente, a Festa de Iemanjá, ocorrida anualmente em Salvador no dia 2 de fevereiro, no bairro do Rio Vermelho, pode ser resumida em um rito: os pescadores oferecem um presente àquela que é considerada a governante do mar. Mas da madrugada até às 16 horas, momento em que o barco leva a escultura com os agrados que possuem natureza reservada ao campo dos segredos do candomblé, cabe uma diversidade caleidoscópica dentro deste evento, que é uma festa com perspectivas múltiplas, como indica as análises dos atuais estudos da antropologia da festa.
A Festa de Iemanjá, portanto, comporta na madrugada do dia 2, o presente para Oxum no Dique do Tororó, uma área localizada a cinco quilômetros do Rio Vermelho. Mas também a chegada do presente principal- a escultura onde está o agrado dos pescadores- por volta das cinco horas da manhã à sede da colônia de pesca. A partir daí, enquanto devotos fazem filas para entregar suas ofertas no espaço preparado especialmente para recebê-las em balaios que serão levados nos barcos que seguem a procissão principal, o entorno da Casa do Peso é tomado por uma profusão de manifestações culturais.
Tem o desfile das mais variadas linguagens artísticas: bandinhas de percussão; blocos organizados por amigos, gente da vizinhança ou donos de bares para festejar com sua freguesia. Cabe o “samba raiz”, aquele que a gente dança “miudinho” sem tirar o pé do chão e com um movimento cadenciado dos quadris- coisa que só especialista de Cachoeira e Santo Amaro faz à perfeição-, e também as rodas de capoeira.
No âmbito religioso vêm os muitos presentes: eles chegam trazidos por terreiros de candomblé de Salvador, de outras cidades da Bahia, mas também de muitos outros estados brasileiros. O afoxé Filhos de Gandhy dá um espetáculo quando desfila com o seu agrado para a Rainha do Mar ao som do irresistível ritmo característico da sua trajetória: o ijexá.
O povo da umbanda monta suas tendas na areia. Ali cantam, dançam e os caboclos, especialmente os que são originários das áreas de porto, como os marujos, tomam o corpo das suas filhas e filhos. O cheiro do charuto se mistura ao de alfazema que devotos de Iemanjá distribuem em meio aos desfiles dos presentes.
E na edição deste ano teve até manifesto político lembrando outras duas festas bem proeminentes na Bahia: a Lavagem do Bonfim e o 2 de Julho. Estas manifestações incluíram performance-protesto em solidariedade a Brumadinho e Mariana e o “Lula Livre”, um bloco que desfilou em defesa do ex-presidente preso em Curitiba. Não adiantou, portanto, a Prefeitura de Salvador ter divulgado nota dizendo que estavam proibidas manifestações com faixas, banners ou balões alusivos a políticos.
Aliás, a prefeitura soteropolitana teve o seu próprio imbróglio político para resolver. A história começou de mansinho com protestos em grupos de Whatsapp e no Facebook: um repúdio à propaganda oficial da festa espalhada ao longo do circuito em que acontece com a chamada “2 de Fevereiro”. Cadê a “Festa de Iemanjá?, bradaram as redes. Como uma onda, o protesto cresceu a partir da tarde do dia 1º e até o Ministério Público, via o Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação (GEDHDIS), sugeriu que a propaganda oficial usasse a denominação “Festa de Iemanjá”. A prefeitura respondeu em nota com um certo atraso em relação à polêmica defendendo-se com argumentos de que não houve desrespeito ao evento, mas deve ter aprendido que o protagonismo conquistado por Iemanjá ganhou mais um ambiente de defesa: o ciberespaço.
Tanto barulho se justifica. Só o povo de candomblé sabe o que passou e passa nessa cidade da bela Baía de Todos-os-Santos para manter sua prática religiosa, mesmo quando ela está dispersa em uma festa feita na rua, portanto muito diversa do que acontece no aconchego dos seus templos que insistem e resistem.
Um exemplo: tem apenas 43 anos que já não é necessário conseguir uma autorização policial para fazer uma festa pública de candomblé. Era assim até 1976 quando o então governador Roberto Santos assinou o decreto acabando com o controle sobre o ambiente dos terreiros que estava com a Delegacia de Jogos e Costumes. A unidade era a mesma que controlava os jogos de azar e prostituição.
Esta é apenas uma amostra da relação dúbia que o poder público e vários segmentos da Bahia mantiveram e ainda mantém com o candomblé e as manifestações que subvertem os roteiros das elites. Se esta prática religiosa é usada pelo estado, de forma mais articulada para “vender a Bahia” a partir da década de 1970, como mostra o antropólogo Jocélio Teles dos Santos em seu livro O poder da cultura e a cultura no poder, na hora de manter seus direitos, o povo de santo, na esmagadora maioria das vezes, se vê sozinho. A defesa é a sua inteligência na construção das próprias estratégias de resistência. É esta experiência que lhe serve de escudo contra os variados ataques que continua sofrendo em variadas frentes, especialmente os desencadeados por denominações neopentecostais e suas variadas alianças de poder.
Multidão no multi-espaço Lalá. Vídeo: @hedernovaes
Por isso a Festa de Iemanjá é um caldeirão multifacetado, mas, sobretudo um monumento à resistência das devoções que nascem do povo. Ortodoxias e normatizações quase sempre não conseguem manter controle por muito tempo. Há disputas narrativas, variadas tensões e sempre novas faces, como as da economia em torno deste evento. A movimentação de dinheiro nesta festa vai desde a poderosa indústria do entretenimento baiana com as chamadas “festas de camisa” capitaneadas por astros como Carlinhos Brown até aquelas que surgiram na movimentação do “black money”. Um exemplo desta última é a Yemanjá é Black.
O surgimento ou transformações de negócios são dinâmicas próprias destes eventos que não se submetem a controles rígidos. Ainda bem porque têm aqueles que não dispõem de meios de produção ou financiamento público para se virar na cidade que sofre como tantas outras com o desemprego. A informalidade, outra marca da festa, é alternativa para muita gente . O isopor de cerveja já não é um negócio tão seguro diante da normatização da prefeitura que estabelece a venda apenas de uma marca. Mas há os ambulantes que insistem em correr o risco. Outra possibilidade de renda é a venda de rosas por R$ 2 a unidade, que uma comerciante me disse ter melhorado em relação ao ano passado.
Um negócio que bombou este ano foi a venda de chapéus com abas bem largas. Eles são realmente ótima proteção contra o sol ardente, enquanto se anda para lá e para cá buscando acompanhar tudo que movimenta o Rio Vermelho em dia de festa.
Mas sempre tem aqueles negócios bem inusitados. O meu eleito deste ano na categoria “criatividade” foi o “banho para os pés”. O serviço estava sendo oferecido nas escadas de acesso ao calçadão para quem decidiu ir colocar sua rosa diretamente nas águas. O valor do “banho” variava de R$ 1 a R$ 2 dependendo da capacidade de pechincha dos clientes e o tamanho do anseio para livrar os pés do incômodo de areia molhada.
E como registrar, catalogar, conceituar e escrever tudo isso? Foi esta umas das perguntas que me inquietaram durante a pesquisa para a minha tese sobre as festas de verão em Salvador; e que agora reapareceu nesta colaboração com o projeto de cobertura realizado de uma forma bela e responsável pelo Mídia Ninja, a partir de um bate-papo descontraído. A minha resposta é múltipla como a festa: andando por ela, observando, experimentando e seguindo. Iemanjá, para o povo de candomblé, é, “a mãe do mundo”. Portanto, não é estranho que em sua festa caiba um mundo de possibilidades e sensações.