Dias atrás a famosa página feminista “Todas Fridas” compartilhou print onde uma mulher dizia ter encontrado dados sobre transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) em prostitutas. Segundo ela, cerca de 68% das prostitutas sofrem da condição, enquanto entre veteranos de guerra este número ficaria em, no máximo, 30%, tais números fazendo-a concluir que “viver na prostituição faz mais mal QUE NUMA GUERRA” (ênfase da autora). Discurso velho, antigo conhecido nosso, a novidade ficando por conta da repercussão, pois agora já é possível perceber mulheres, não só trabalhadoras sexuais, contestando o teor desse tipo de postagem. O discurso hegemônico sobre prostituição, com as prostitutas invariavelmente colocadas ou no papel de criminosas ou de vítimas, sempre incapazes de falar por si, parece já não ter a mesma força de outros tempos.

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A primeira coisa que nos vem à mente ao analisar o post é que uma pessoa que concebe (e referenda) uma comparação desse tipo precisa, antes de mais nada, acreditar piamente que guerras são como joguinhos de videogame e, além disso, nunca ter pisado numa zona de prostituição pra conversar com prostitutas (e, lógico, menos ainda com veteranos de guerra).

“Acabei de ver aqui” ou “o máximo que encontrei” e pronto, o Instituto de Pesquisas Data Foda-se ratifica uma conclusão válida para todas as modalidades do trabalho sexual, tratadas aqui como iguais ou equivalentes.

Mas o post foi além: o print, junto com a legenda escolhida pela página (“prostituição não é empoderamento”), resolveu ainda reduzir a luta inteira das trabalhadoras sexuais a uma reivindicação que nós, enquanto movimento, sequer defendemos, a de que prostituição seria empoderadora ou um trabalho fácil. Para começo, é preciso lembrar que estamos falando de trabalho e que, no capitalismo, trabalho algum é empoderador – em especial os exercidos por pessoas com menor leque de escolhas, como costuma acontecer na prostituição.

De qualquer modo, empoderamento não pode ser critério para definirmos se um trabalho é válido ou não, se ele deve ou não existir.

Limpar privadas, trabalhar como ambulante, atendente de lanchonete, telemarketing, bombeiro em Brumadinho, policial nas grandes capitais, nenhum desses trabalhos é, a priori, empoderador, mas parece que o único que não deveria existir em função isso é a prostituição.

E aqui se escancara o propósito do post: “provar” que a prostituição é o pior dos trabalhos exercíveis por uma mulher ou, mais do que isso, “provar” que prostituição não é sequer um trabalho. Para garantir esse ponto, vale inclusive ignorar, atropelar, desacreditar o que nós, trabalhadoras sexuais, e nossos coletivos dizemos sobre essa atividade e sobre as demandas que nos parecem mais urgentes. Não é reivindicação de nenhum coletivo de prostitutas lutar para que a prostituição (ou mesmo nossa clientela) seja criminalizada ou deixe de existir.

A prostituição é, sim, um trabalho, trabalho exercido por um sem-número de pessoas ao redor do mundo, na maioria das vezes de modo clandestino e privado de direitos. E discursos como esses, vindos de coletivos feministas, contribuem para que as pessoas, em sua maioria mulheres, sigam sofrendo com estigma, preconceito e privação de direitos.

Voltemos aos dados, no entanto. Lançados na página como se fruto de pesquisa da própria autora, fomos em busca da fonte. O texto de Larissa Correa no site Não Aguento Quando nos informa que esses dados são fruto de pesquisa da professora Donna M. Hughes, uma das fundadoras da CAT (Citizens Against Trafficking), organização norte americana que defende o proibicionismo da prostituição e que conta com grande apoio da bancada conservadora.

O interessante é que o texto da Larissa linka como fonte o site da organização Concerned Women of America, uma organização da extrema direita estadunidense que luta contra a prostituição, contra a legalização do aborto e em defesa da família.

Em sua página de apresentação, falam sobre seu empenho, nos últimos 35 anos, em levar preceitos bíblicos para as políticas públicas, protegendo esses valores através da oração e da ação.

Fomos então em busca da pesquisa de Donna M. Hughes, responsável por apresentar aqueles dados: “Sex trafficking of women in the United States – International and domestic trends”, 2001. Publicada em parceria com Janice G. Raymond e com a coordenação de Carol J. Gomez, não há, no entanto, nenhuma passagem do texto que referende esse número. O que houve, isso sim, foi uma leitura equivocada da tabela apresentada na p.81 (“Women’s reports of mental and emotional difficulties as a result of sexual exploitation”), na qual se lê que, numa pesquisa conduzida com 25 prostitutas americanas, a resposta de 15 delas foi incluída na categoria “Outros”, categoria que congrega, segundo a nota de rodapé, os seguintes itens: paranoia (2), distúrbio alimentar (4), baixa auto-estima (4), vergonha (2), síndrome do pânico (2), síndrome do sobrevivente (2), “vontade de matar alguém” (2), transtorno de estresse pós traumático, “não ligo se eu morrer”, “me sinto suja”, flashbacks, ouvir vozes, dificuldade de construir relacionamentos, ansiedade em relação aos homens, disfunção sexual, dissociação.

Todos esses itens estão computados na categoria “Outros”, sendo que “transtorno de estresse pós-traumático” (TEPT) sequer traz o número de vezes que foi apontado na entrevista: uma, talvez? Isso não impediu que a pessoa que se apropriou do dado tratasse as 15 respostas como indicativas de TEPT.

Isso sem contar o fato de que, para além da deturpação da informação, uma amostragem de apenas 25 mulheres está sendo usada como base para formarem um veredito sobre TODA A PROSTITUIÇÃO.

Fakenews, mas agora instrumentalizado por coletivos feministas de esquerda para tentar inviabilizar a luta de trabalhadoras sexuais. As mais de 16 mil curtidas (somando-se Instagram e Facebook) que o post recebeu nos mostram o quanto estamos ainda no começo dessa disputa de consciências, mas as vozes que fizeram questão de aparecer por lá para questionar o absurdo dessa publicação são indicativas de que é possível sim construir luta com quem não exerce a profissão.

Nada sobre nós sem nós.