Escutar os saberes ancestrais para evitar a queda do céu, o sumiço do chão e o veneno no prato
Do fim ao (re)começo do mundo
Do fim ao (re)começo do mundo
Por Susana Prizendt
“Parem de falar. E façam alguma coisa!”
Laila, menina, moradora do Estado insular de Barbados, no filme O que importa – Uma mensagem das crianças aos líderes da COP28
“Cuidado, muito cuidado. Não tire da terra mais do que você pode oferecer a ela.”
Mestre Antônio Bispo dos Santos (Nêgo Bispo)
“Nos próximos 10 anos o mundo poderá ter seu primeiro trilionário, mas levará quase 230 anos para acabar com a pobreza.” (Relatório Desigualdade S.A. divulgado pela Oxfam em janeiro de 2024)
Nenhum(a) artista visual poderia ter criado uma obra tão tragicamente simbólica: uma cidade afundando devido à voracidade que o sistema econômico que a domina apresenta pelas “riquezas” que seu território abriga. No caso real que aqui mencionamos, os “tesouros”, como as estórias de piratas sempre mencionam, estão bem enterrados no subsolo – parte deles a centenas de metros abaixo da superfície – e atendem pelo nome de sal-gema, um mineral usado na indústria química, que demora milênios para formar suas jazidas subterrâneas.
Maceió, capital do estado de Alagoas, ganhou espaço de destaque no noticiário nacional, no último trimestre de 2023, após agonizar por anos em um processo de canibalização, em que seu território foi sendo devorado pela fome insaciável que o capitalismo mundial apresenta por “recursos” que mantenham suas engrenagens funcionando. Uma área em que moram dezenas de milhares de pessoas está condenada por, literalmente, não ter mais o chão firme debaixo de seus pés, e precipícios podem se abrir a qualquer momento, sobretudo em tempos de chuvas de verão, engolindo carros, casas, ruas inteiras…
Quando um povoado é vítima de um banquete mortal como esse, o que perece não é somente sua matéria física. A história, o modo de viver, a sensação de pertencimento à uma coletividade, a perspectiva de um futuro conjunto… tudo isso é mastigado pelos dentes dos banqueteadores.
Mas, afinal, quem seriam esses devoradores de futuro, que parecem não sentir nem um pingo de empatia pelo povo que habita o local?
Podemos começar citando o nome de uma empresa: Braskem. Mas ela é somente a boca no sistema digestivo que processou a carne desse território, através da exploração que fez por décadas em suas 35 minas. Depois do trabalho inicial de mastigação, ainda vêm muitas etapas e há todo um conjunto de atores que entram em cena. Ao contrário do que o nome da tal empresa sugere, o processo de digestão não se restringe ao território brasileiro, ele se estende globalmente, alimentando um modelo produtivo internacional que suga gentes e naturezas para se perpetuar.
E é justamente por isso que a imagem de uma grande cidade sendo tragada pelo abismo que os próprios seres humanos cavaram é tão representativa. A sociedade globalizada está fazendo exatamente isso com o planeta. Do mesmo modo como as pessoas que conduziram a capital de Alagoas para o buraco sabiam muito bem que isso iria acontecer e não mudaram seus planos, a elite mundial que detém o poder político-econômico sabe que estamos chegando a um ponto de desequilíbrio ambiental, provocado pelas ações humanas, em que calamidades como essa vão se tornar fichinha perto das que virão.
Pisando no acelerador
Não é à toa que a comunidade internacional de ativistas socioambientais se revoltou contra o teatro do absurdo que assistimos durante a 28ª Conferência de Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas (COP 28), chamada ironicamente de COP dos Lobistas, realizada de 30 de novembro a 12 de dezembro de 2023.
Começando pelos seus anfitriões, os Emirados Árabes Unidos, que enviaram como seu representante e, portanto, como o presidente do encontro, o Sultan Al Jaber – ministro da Indústria e Tecnologia Avançada, chefe da Companhia Nacional de Petróleo de Abu Dhabi (ADNOC) e presidente da Masdar, a empresa estatal nacional de energia renovável (fundada em 2006 e vista pelos ambientalistas como um instrumento para tentar dissimular a pegada climática do país, um ávido extrator e fornecedor de combustíveis fósseis) -, o show de horrores seguiu com declarações estapafúrdias, inclusive por parte de brasileiros, como Jean Paul Prates, atual presidente da Petrobrás, ao dizer que a empresa será das últimas a parar de extrair petróleo (destoando do discurso pró-ambiente feito por Lula, que chegou ao encontro embalado pela redução do desmatamento na Amazônia em seu governo).
A declaração de Prates não parece ter sido bravata porque, entre as benesses previstas nos planos de sua atual gestão, está a exploração de fontes até em Fernando de Noronha, ilha que é (ainda) um reduto de preservação da natureza. As emissões geradas pelos campos leiloados, no que foi chamado de Leilão do Fim do Mundo, se eles forem mesmo explorados, corresponderão ao volume que nosso país havia se comprometido a reduzir nos próximos seis anos, caso fosse mesmo cumprir a meta estabelecida no Acordo de Paris. Várias petições e manifestos contra esse acinte vêm circulando nas redes sociais, mas seu alcance é muito restrito e a população nem tem consciência do que está em questão.
Seria coincidência ser essa mesma Petrobrás uma grande acionista da Braskem, a maior empresa latino-americana no setor petroquímico e uma das maiores do mundo, com receita anual de quase 100 bilhões de reais – cobiçada pela mesma ADNOC dos anfitriões da COP 28 – e justamente a empresa que comeu Maceió? Não, não dá mais para acreditar em coincidências. Já ficou nítido que o sistema capitalista está disposto a dobrar a aposta com a natureza e seguir vampirizando o planeta até que este dê um basta e se livre, enfim, de uma espécie animal que parece insensível aos avisos dramáticos emitidos por ele.
No entanto, nesse “jogo”, quem sofre primeiro e mais intensamente são os seres vivos que não compartilham do poder de decisão que tais apostadores compulsivos detém. São animais e vegetais de todos os tipos e tamanhos, muitos ainda nem conhecidos por nós, que agonizam na jogatina. É a sexta extinção em massa vindo no galope de uma manada de veículos bebedores de gasolina que não cessa de crescer, ao contrário das expectativas geradas nas 27 COPs anteriores.
Só que nós, homens e mulheres sapiens, estamos dentro dessa teia biodiversa que se esfacela. E uma grande parcela da nossa espécie vem sendo continuamente devorada pela máquina de moer carne corporativa, pilotada por uma elite ínfima em tamanho e gigantesca em voracidade. O que dizer quando o 1% mais rico do planeta é responsável pela mesma pegada climática que os 5 bilhões mais pobres?
Segundo o relatório Desigualdade S.A. – Como o poder corporativo divide nosso mundo e a necessidade de uma nova era de ação pública (recém-lançado pela Oxfam para fazer um contraponto ao Fórum Econômico Mundial, que ocorreu de 15 a 19 deste janeiro de 2024), a riqueza dos cinco homens mais ricos do mundo cresceu 114% nos últimos 4 anos, ao mesmo tempo em que a riqueza detida por 5 bilhões de pessoas diminuiu. Isso significa que, se seguirmos esse ritmo, em 10 anos veremos surgir o primeiro trilionário e levaremos 230 anos para acabar com a pobreza.
Se números são uma abstração, carentes de emotividade, pense em uma multidão de pessoas que não tem o que comer, assistindo meia dúzia de indivíduos se banqueteando com todas as iguarias imagináveis e em volume incalculavelmente superior ao que precisam para viver e ao que a vida pode sustentar. Cruel, não é? O empanturramento desse grupelho hoje, significa a fome de todos, amanhã.
Não dá para deixar de perguntar quem são esses comilões e quem faz parte da multidão faminta. Homens, brancos, bilionários: se você não pode ser descrito ou descrita por esses três termos, tá fora do clube gourmet. Mas isso não significa que todo o restante pertence ao grupo de famélicos. Ele é composto majoritariamente por mulheres negras do sul global e, para dar uma noção dessa realidade, podemos mencionar o fato de que toda a riqueza que a população feminina africana detém conjuntamente equivale ao que 22 homens bilionários possuem. E vale lembrar que, mesmo assim, esse punhadinho de machos alfa não está nem um pouco satisfeito!
Mais veneno no horizonte
O resultado dessa desigualdade brutal é que estamos vendo nosso mundo, em toda a sua vasta sociobiodiversidade, ser destruído em função do que é usufruído irresponsável e insaciavelmente por uma pequena “casta” de indivíduos humanos. Nesse redemoinho, as crises enfrentadas (atualmente e daqui pra frente), incluindo a crise climática, vão gerar consequências também muito desiguais, ampliando ainda mais o sofrimento de quem já luta para sobreviver e menos contribui com o processo de destruição em curso.
Para tentar contrabalançar a desfaçatez de quem estava nos debates oficiais da COP, a programação paralela abriu espaço para iniciativas menos sujeitas ao engessamento causado pelos lobbies de sempre. Um grupo de parlamentares ambientalistas da América Latina e do Caribe, integrantes do Observatório Parlamentar de Mudança Climática e Transição Justa (OPCC), por exemplo, propôs uma união em torno do que chamaram de Bancada Pelo Planeta. Com forte protagonismo de representantes dos povos originários, como a deputada federal brasileira Célia Xakriabá, o coletivo lançou um pacto baseado em três princípios: não regressão ambiental; prática baseada em evidências e diálogo social; transição justa, participação social e inclusão produtiva.
O documento está aberto para assinaturas de outros parlamentares de todo o mundo e talvez consiga fazer com que essa rede global ajude cada nação a enfrentar suas bancadas da bala, do boi e da bíblia, nas quais o negacionismo climático sempre é predominante. Dois meses antes, o Observatório já havia criado o que chamou de Plataforma Virtual e Monitor de Dados Legislativos, em que é possível acompanhar o que está sendo feito a nível legislativo nos 18 países integrantes da rede. Não chega a ser revolucionário, mas é uma ferramenta importante para o acesso à informação e o estímulo à integração da região e à participação social de seus habitantes no processo de transformação que precisamos fazer.
Eu consultei a Lei brasileira que regula os Agrotóxicos, que consta em sua versão vigente desde 1989, e não há menção, por enquanto, à aprovação do Pacote do Veneno pelo Congresso Nacional, tapa na cara que todos os nossos senadores, exceto a senadora Zenaide Maia, nos deram às vésperas da realização da COP, jogando uma batata fervendo (e tóxica) nas mãos do governo Lula. O prazo para o veto ou sanção presidencial ao estrupício ruralista, uma verdadeira bomba para a saúde da população e do ambiente, se encerrou no dia 27 de dezembro e, durante todo este tempo, os movimentos sociais fizeram ações constantes pelo veto integral por parte do presidente.
Pressionado pela bancada do trator e pelo Ministro da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, Lula acabou optando pela sanção parcial, vetando apenas 14 pontos do famigerado PL, sendo o veto mais importante o que é referente ao artigo que retira o poder da ANVISA (órgão regulatório do Ministério da Saúde) e do IBAMA (instituto atrelado ao Ministério do Meio Ambiente) de participar ativamente da decisão de liberar novos agrotóxicos. Se o artigo constasse na Lei da forma como foi aprovado pelo Congresso, a tendência seria o aumento ainda mais acentuado de aprovação dessas substâncias, que já vem ocorrendo em ritmo recorde, acima de 500 novas liberações ao ano, muitas com alto teor toxicológico e proibidas em países da União Europeia. Mesmo no ano passado, já sob a nova administração, tivemos a aprovação de 557, queda de apenas 15% em relação ao aprovado em 2022, no governo anterior.
Agora, cabe a nós seguir na luta contra a derrubada de vetos pelos parlamentares e contra todo o processo de envenenamento que tem assolado nossa população. Vale lembrar que o último levantamento sobre a presença de resíduos dessas substâncias na nossa comida, recém divulgado pela ANVISA, mostra que um em cada quatro alimentos analisados têm níveis acima do permitido ou a presença de agrotóxicos proibidos no território nacional. E que a cada US$1 gasto na compra de agrovenenos, há um ônus de US$1,28 para o SUS, como menciona o Atlas dos Agrotóxicos, elaborado pela Fundação Heinrich Böll e também recém lançado.
O setor vem sendo alvo de discussões acaloradas mundo afora e, recentemente, a UE renovou a permissão do uso do glifosato, agrotóxico mais utilizado no mundo e comprovadamente cancerígeno, por mais 10 anos, em uma nítida demonstração de que mesmo seus habitantes, cujas vidas têm sido consideradas mais valiosas do que as da rapa planetária, como exposto no livro Colonialismo Químico, de Larissa Bombardi e já descrito em um artigo que escrevi anteriormente, também não estão a salvo do lobby veneneiro.
Vozes dissonantes ou ressonantes?
Voltando aqui pra Terra Brasilis, embora tenhamos assistido mais de 500 anos de massacre contra os povos originários, eles ainda resistem e representam a possibilidade de algum tipo de reequilíbrio socioambiental. É nos territórios indígenas e quilombolas que ainda encontramos os ecossistemas preservados, segurando os fios que compõem nossa teia vital para que ela não se dissolva frente à exploração humana. Não é por acaso que a reserva do Xingu tem uma temperatura média de 5 graus a menos que seu entorno, onde o agronegócio tóxico impera.
Mas a trama está cada vez mais frágil, a derrubada de vetos de Lula ao Marco Temporal, que o Congresso promoveu no dia 14 de dezembro de 2023, jogou mais lenha na fogueira que consome nossas matas e aquece o planeta, abrindo espaço para mais soja, mais gado, mais extração de minérios e muito menos vida. Os alertas desses povos, mesmo quando chegam a espaços de decisão como as COPs, não costumam ser ouvidos e os recursos prometidos em apoio ao papel que desempenham como guardiões das florestas quase não chegam às suas mãos.
Cacique Raoni, David Kopenawa, Txai Suruí, Ailton Krenak, Sônia Guajajara (hoje à frente do Ministério dos Povos Indígenas do Brasil) são algumas das lideranças indígenas que já lançaram suas flechas certeiras ao mundo, ao mostrarem como seus territórios seguem sob ameaça de destruição – o que tem implicações planetárias, pois isso representa a perda das condições vitais básicas da natureza da qual dependemos. Os pontos de inflexão, a partir dos quais não é mais viável recuperar o equilíbrio de biomas como a Amazônia, já estão próximos de virar realidade.
No livro A Queda do Céu, Kopenawa conta como seu povo, os Yanomami, tem sido, há décadas, alvo de extermínio devido ao garimpo na região, chegando, durante o desgoverno Bolsonaro, a um nível tão acentuado, que podemos falar em genocídio. Aqui vale dizer que, assim que assumiu a presidência, Lula tomou medidas para promover a expulsão dos garimpeiros, mas eles acabaram voltando no último trimestre do ano passado e colocando em risco a população indígena local, através da contaminação da água por mercúrio e da forma violenta com que agem.
Na virada de 2022 para 2023, as imagens de crianças esqueléticas em aldeias Yanomami chocaram quem assistiu às reportagens apresentadas na TV. Mas, depois do noticiário, sempre vem as novelas e os anúncios publicitários, a rotina segue, e a fome, tanto a que é sentida por crianças pelo mundo afora quanto a que é apresentada pela sociedade em relação ao consumo dos tais “recursos” naturais, se perpetua. Quem se coloca no caminho dessa perpetuação corre sérios riscos.
Há alguns meses, assistimos com tristeza a despedida de Maria Bernadete Pacífico, conhecida como Mãe Bernardete, líder quilombola que foi assassinada em sua casa no dia 17 de agosto de 2023. Sua voz havia destoado demais do coro do gado humano que costuma caminhar para o abatedouro sem reagir. Apesar da tal “cordialidade” atribuída ao Brasil, somos um dos países que mais matam ativistas no mundo e as taxas de assassinatos de mulheres quilombolas têm aumentado, como revela o relatório feito pela Terra de Direitos e pela Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), o que provavelmente tem relação com o fato de 99% de seus territórios, cerca de 5 mil no país, terem a natureza bem preservada – segundo o Projeto de Monitoramento do Desmatamento na Amazônia Legal (PRODES), realizado entre 2008 e 2022 -, representando barreiras ao desmatamento em regiões como a Amazônia e o Cerrado.
A esses assassinatos podemos somar as mortes originadas pelo contínuo massacre sofrido pelo povo negro – ao qual Mãe Bernardete pertencia e era uma liderança reconhecida -, nas periferias urbanas do nosso imenso território. Uma pessoa negra foi assassinada a cada 4 horas no Brasil e pessoas negras constituíram 87% do total de vítimas fatais de ações policiais no país, durante o ano de 2022. Quem incomoda ou quem não interessa à manutenção do sistema costuma ser descartado, seja pela violência da bala, seja pela violência da miséria. E ambas as violências tendem a se agravar em um planeta que ferve.
Se calamos as vozes que nos alertam sobre o colapso civilizatório iminente ou se as ouvimos e não conseguimos assimilar realmente seu conteúdo por estarmos já anestesiados em um dia a dia baseado no consumo das tais, como diz Kopenawa, “mercadorias” – que hoje não se restringem à esfera material, já que uma série de produtos virtuais inundam nossas vidas, – deixamos de perceber que existe uma outra forma de existência humana e que não precisamos nos resignar à que nos é imposta pela elite devoradora do futuro. E o que piora o drama é que muitas dessas vozes estão se extinguindo.
No final de 2023, foi a vez do mestre Antônio Bispo dos Santos, ou Nêgo Bispo, como era conhecido, nos deixar. Embora sua morte não tenha sido obra de capangas a mando de mandatários de plantão e, sim, decorrente de um problema cardíaco, ela tocou fundo na alma das pessoas que fazem parte do movimento agroecológico. Integrante da Teia dos Povos, autor de livros como Colonização, quilombos: modos e significações e A Terra Dá, a Terra Quer, lavrador de alimentos e pensamentos, ele sempre nos presenteou com formas de compreender a vida que estavam a quilômetros-luz de distância das formas hegemônicas e denunciou veementemente a doutrinação que sofremos desde que nascemos para acreditar que as relações humanas precisam sempre ser mediadas pelo dinheiro e que o imediatismo é a única maneira de lidar com o tempo. E denunciava-anunciando, ao partilhar que o projeto de coletividade ao qual se dedicava tem como referência os próximos três mil anos!
Desmonoculturar e contracolonizar a vida
O fundamentalismo de mercado, contra o qual Bispo lutou, usa as demais esferas passíveis de doutrinações fundamentalistas, como a religiosa, a de gênero e a étnico-racial, para nos fazer acreditar que manter a lógica capitalista, com sua estrutura patriarcal, que pressupõe a supremacia branca cristã, é a única possibilidade para que possamos existir enquanto humanidade, o que não apenas é falso, mas que é justamente o oposto do que é necessário fazer. Ouvir pessoas que viram essa lógica do avesso, como Nêgo Bispo e sua proposta “envolvimentista” de existência, mencionada em oposição ao império da busca pelo tal desenvolvimento infinito – seja ele acompanhado de palavras mais “verdes”, como sustentável, ou não -, pode fazer com que algo estrale de repente em nossa consciência.
Colonizados fomos e colonizados estamos, no cerco imposto pelas monoculturas físicas e mentais – sempre bem disfarçadas pelas falsas afirmações de diversidade – e, se não percebermos que há outras formas de existência, colonizados seremos até que o colapso ambiental nos mostre que o ser humano não manda nos demais seres e forças da natureza e que o sistema que tenta impor ao planeta não tem a menor sustentação. O rompimento dessa servidão ao Deus mercado, às vezes apelidado “carinhosamente” de PIB, passa por abrir os ouvidos para as vozes das florestas, das águas e dos campos e deixar que elas insuflem em nós as chamas da re-existência.
É assim que poderemos juntar a ancestralidade com o por vir, entender como se deu a formação da realidade atual, olhar para os antigos saberes dos povos do mundo e descobrir como podemos nos inspirar em experiências diferentes de existência para transformar essa realidade, abrindo espaço para que surja uma nova forma do que é chamado de Bem-viver. Perceber que não estamos fadados ao que se apresenta de forma majoritária no presente, mas que existiram e ainda existem outras maneiras de nos relacionarmos com a natureza da qual somos parte, é um verdadeiro despertar, a partir do qual a jornada rumo ao futuro pode ser trilhada com mais esperança.
A Agroecologia desponta nesse caminhar, ao unir as dimensões sociais, como justiça socioeconômica, alimentação saudável e saúde popular, com as dimensões ambientais, como a restauração dos ecossistemas e o cuidado com o solo e os cursos hídricos, para que sejam livres de contaminação. Ela é a bandeira viva que nossos movimentos costuraram, através do trabalho de milhões de mãos de todas as cores, para empunhar na luta contra o mecanismo que está gerando o caos planetário. As sementes que estão sendo plantadas diariamente por essas mesmas mãos vão brotar e gerar novas sementes, demonstrando o que dizia Nêgo Bispo: que, no modo de viver dos povos originários e afro-confluentes, não há começo, meio e fim, mas há começo, meio e começo novamente.
Então, se podemos ter a possibilidade de começar, por onde poderia se dar esse novo começo? Cuidar do céu, limpando seus ares de tantos gases estufadores (ou descarbonizando-o, como dizem os cientistas) para que ele não caia. Cuidar da terra, ao deixar de remover irresponsavelmente os seres minerais que estão abaixo de sua superfície e voltar a nos dedicar a nutrir a fertilidade das camadas nas quais pisamos, para que o chão não suma, o abismo não nos engula e a fome não nos devore. Trocar as monoculturas que nos oprimem pelas pluriculturas que nos libertam.
O anúncio de confirmação de que haverá a realização da Cúpula dos Povos da COP 30 em 2025 no Brasil, feito durante a COP 28, representa um gesto nessa direção, trazendo as vozes que são dissonantes em relação ao poder econômico, mas estão em ressonância com a natureza, para assumirem o protagonismo no debate sobre os rumos planetários (já que os representantes oficiais dos países nesses encontros seguem em marcha lenta em relação às decisões necessárias, como mostram os resultados do documento consensual).
E essas vozes também protagonizaram um outro encontro fundamental para a população brasileira: a 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CNSAN), realizada entre os dias 11 e 14 de dezembro de 2023, sob organização do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), após um amplo processo de conferências municipais e estaduais. A presença das mulheres negras na condução das atividades do encontro foi uma demonstração de que a hegemonia branca patriarcal não tem nada a ver com a conquista do alimento saudável e biodiverso no prato do povo. Vale conferir o Manifesto pela Erradicação da Fome e pela Garantia do Direito à Comida de Verdade, Democracia e Equidade, lido ao final do encontro com a síntese do que foi debatido.
Sim, nossas Mães de gentes e de santos renovaram as energias da luta, seja nas declarações que deram nos debates sobre o que é realmente Soberania Alimentar, seja nos atos simbólicos realizados para marcar a confluência entre a Conferência Popular de SAN – que se constituiu como alternativa durante o vazio gerado pelo fim do CONSEA durante os anos Bolsonaro – e a Conferência Nacional de SAN – que voltou triunfante para ressoar as vozes de quem nutre as barrigas e as almas dos povos em nossos territórios!
Entretanto, para quem preferir ouvir vozes menos “alternativas”, é possível encontrar “inspiração” na frase de um comunicado da Braskem sobre como a situação em Maceió pode se desenvolver: “um cenário é de acomodação gradual e estabilização; o segundo é uma possível acomodação abrupta”. Ou, ainda, ficar com a fala do prefeito de Maceió à CNN Brasil: “a boa notícia é que conseguimos evacuar toda essa área” – o que, no nosso caso, seria o equivalente a evacuar “todo esse planeta”.
Eu fico com nossas Mães e nossos Nêgos, e você?
Susana Prizendt, arquiteta urbanista, integrante da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida e do Movimento Urbano de Agroecologia – MUDA.