Dor para a infância: uma promessa do governo bolsonarista
Em pregação de 2016, o ainda anônimo Milton Ribeiro vociferou: “Há uma inclinação na vida da criança para o pecado, para a coisa errada”.
Em pregação de 2016, o ainda anônimo Milton Ribeiro vociferou: “Há uma inclinação na vida da criança para o pecado, para a coisa errada”. A frase antecedeu e fundamentou aquela, sobre disciplinamento infantil, que ganhou os jornais à ocasião de sua nomeação para um importante cargo governamental. Conforme sentenciou o agora Ministro da Educação, criança “deve sentir dor”.
O advogado e pastor evangélico Milton Ribeiro é a quarta tentativa de encaminhar a pasta em menos de dois anos de gestão do Poder Executivo Federal. Primeiro se responsabilizou por ela um saudosista da ditadura. Depois, um lunático anticomunista. Nomeado, mas não empossado, passou rapidamente pelo cargo um certo Carlos Decotelli. Enfim, até a data em que escrevemos este artigo, à frente há um religioso alinhado à proposta de moralização da educação.
É verdade que ele não parece ter incorrido nos riscos de falsear histórico acadêmico ou plagiar produções como colegas do mesmo escalão. Conta, em verdade, com uma produção acadêmica quase inexistente. O que deve tê-lo tornado atraente para o cargo são as manifestações em púlpito recheadas de machismo, LGBTIfobia, crueldade e anticientificismo.
O novo ministro coleciona uma trajetória que cheira a naftalina. Já ensinou que o homem deve conduzir o casal para que a família não seja atacada por inimigos. Justificou um feminicídio pela “paixão louca” de quem o cometeu. Lamentou pelo sujeito que marcou a sua vida e a de sua família com um crime insano. No discurso, esqueceu-se de mencionar a vítima, que era uma adolescente de 17 anos. Afirmou, ainda, recentemente, em entrevista, que a homossexualidade é consequência de famílias desajustadas.
Tudo revela o que estava por trás da acusação a defensoras de direitos humanos de pretenderem erotizar crianças quando se reivindicava educação sexual e inclusão de temáticas ligadas a desigualdade de gênero em currículos escolares. Ansiosos por empunhar a “vara da disciplina”, como intitulado o discurso de Milton Ribeiro acima citado, os bolsonaristas temem um mal que alegam já estar dentro destes pequenos seres e prometem sufocá-lo a qualquer custo. Não é coincidência que a pasta seja um feudo político de tanta disputa por religiosos fundamentalistas.
A recente condução teocêntrica da educação aproveita os últimos respiros das cruzadas antigênero e do Movimento Escola Sem Partido. Paulatinamente derrotadas no campo jurídico, as iniciativas ainda mobilizam uma militância capaz de perseguir nomes pouco identificados com o combate à “ideologia de gênero”, como ocorreu com o Secretário da Educação do Paraná, o ultraliberal Renato Feder. Convidado para liderar o Ministério desta temática a nível nacional pelo Presidente da República, ele declinou do encargo após forte campanha contrária promovida por eleitores de Jair Bolsonaro.
Mesmo assim, neste estado, o projeto bolsonarista para a infância e para a juventude navega de vento em popa. Prova disso é que a Assembleia Legislativa do Paraná aprovou, recentemente, o Projeto de Lei 543 de 2020. Proposta pelo governador Ratinho Júnior – um político notadamente simpático ao desgoverno federal –, a iniciativa permite a militarização de escolas públicas do estado e foi votada durante a pandemia em regime de urgência, sem qualquer diálogo com a população. O placar foi desalentador: 45 votos favoráveis e 06 contrários entre os parlamentares. O chefe do Poder Executivo do Paraná prevê, com isso, a transformação de pelo menos duzentas escolas abatidas pela vulnerabilidade social para este formato a toque de caixa.
Que interesses têm os militares em ocupar cargos de gestão de escolas da periferia – espacialidade em que a presença policial sempre esteve ligada a abusos, violência e encarceramento contra a juventude negra? Como garantir a gestão democrática da escola eliminando-se o processo de consulta à comunidade escolar para a indicação das diretorias? O disciplinamento militar é compatível com a liberdade de expressão e com a liberdade de cátedra? Qual será o tratamento a corpos, comportamentos e sexualidades contrários ao padrão hegemônico? E como lidar com o cotidiano escolar permeado pela educação sexual independentemente do conteúdo dos currículos?
Ora, em espaços escolares, familiares, comunitários, entre tantos outros, estabelecem-se, pela fala ou pelo silêncio, pela transparência ou pelo pudor, lições de educação sexual. Ignorar ou contornar questionamentos ou condutas infanto-juvenis sobre sexualidade fecha oportunidades de diálogo franco e abre espaços menos preparados para se ocuparem destas demandas que tendem a se intensificar em uma era de acesso ilimitado a qualquer tipo de conteúdo à milimétrica distância de uma tela.
Quais efeitos, afinal, produz a repreensão obcecada a experiências, dúvidas e sensações que inevitavelmente atingem todos os sujeitos em desenvolvimento? As crianças perguntam sobre diferenças entre os corpos lidos como masculinos e femininos. Querem saber como vieram ao mundo. Pelos corredores da escola se produz bullying baseado em normas de gênero. Há meninas que ainda durante a infância menstruam e que necessitam de informações a este respeito. E mesmo muitas são vítimas de estupro dentro de suas próprias casas. Umas inclusive engravidam como consequência desta violência bárbara e esbarram em um calvário institucional para acessarem o aborto. Aliás, não faltam acusações sérias de que outra pasta próxima à da Educação – a da Mulher, Família e Direitos Humanos, liderada pela Ministra Damares Alves – agiu para impossibilitar este direito, recentemente, a uma menina violentada sexualmente de apenas 10 anos.
É dia das crianças, mas a elas, o bolsonarismo não oferece presente nem futuro. A tentativa governamental de imposição forçada de determinados comportamentos em relação às crianças objetiva a continuidade de um determinado paradigma desalentador. Envolve formação para um trabalho dócil, precarizado e acrítico, desde o ponto de vista do capitalismo. Anseia machismo e heterossexualidade compulsória, desde o ponto de gênero. Projeta o fortalecimento do racismo, desde o ponto de vista racial.
Mais revolucionário é desejar para 12 de outubro que o mundo criado por crianças importe. O mal que, para o atual Ministro da Educação, ocupa cada corpo infantil se chama, em verdade, potência.
Lígia Ziggiotti é doutora em Direitos Humanos e mestra em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná, professora de Direito Civil da Universidade Positivo e vice-presidente da Associação Nacional de Juristas pelos Direitos Humanos LGBTI – ANAJUDH (@anajudh_lgbti).
Rafael Kirchhoff é advogado, militante de direitos humanos e presidente da ANAJUDH (@anajudh_lgbti).