“Discriminação e racismo se tornaram uma política de Estado”, diálogos de quarentena com Adriana Salvatierra
Adriana renunciou ao cargo de senadora no dia em que Evo Morales sofreu um golpe e conta como segue a militância na Bolívia e como têm enfrentado as condições adversas do governo atual.
por Araceli Carrizo Richelet e Juan Manuel P. Domínguez
Adriana Salvatierra é uma cientista política e política boliviana-chilena. Em 2015 ingressou no cargo de Senadora pelo Movimento ao Socialismo em representação do Departamento de Santa Cruz. Os jovens de seu partido a elegeram candidata a senadora em 2014 por seu profissionalismo e trabalho de base com organizações sociais, civis e camponesas. Salvatierra foi a mais jovem presidente do Senado na história da Bolívia, desde que assumiu o cargo aos 29 anos. Vale destacar que, com apenas 29 anos, Adriana Salvatierra se torna a quarta mulher da história a presidir o Senado. Hoje atua como legisladora e membro do partido, acompanhado por Evo Morales, na campanha de Luis Arce e David Choquehuanca
Qual é a sua atuação atual e militante após a renúncia à presidência do Senado e após vivenciar assédio e ameaças das milícias da extrema direita?
Fui uma das que ficaram no país, não que tenha transformado isso em uma demonstração de coragem, porque todos nós, colegas, vivemos situações absolutamente diferentes. Continuo como legisladora, neste momento do Movimento ao Socialismo, como membro do nosso partido, da nossa estrutura e da Bolívia, acompanhando a campanha em condições muito adversas. Condições em que o estado de emergência não iniciou ações sobre a crise de saúde, mas ao contrário, vive-se desde novembro da impunidade do exercício da violência pelas Forças Armadas, e até agora não houve investigação a respeito desses acontecimentos. Impunidade em relação aos acontecimentos ocorridos na Bolívia em 2019 e que culminaram no golpe que todos conhecemos. Mas aqui como militante, ainda como servidora pública, claro que na Assembleia Legislativa, mas fundamentalmente continuo a acompanhar a campanha do nosso candidato Luis Arce e David Choquehuanca. Mas é verdade que existia um quadro estrutural de violência, em múltiplas facetas, a primeira coisa que todos nós temos que entender é que tem muita gente que fala que não foi um golpe, porque participaram dele, desde o bloqueio em seu bloco, em sua casa, etc e que parece estar tentando calar algo que realmente aconteceu e que as Forças Armadas pediram a Evo Morales que renunciasse. O mesmo comandante das forças armadas. A polícia se amotinou nos nove departamentos e absolutamente nada foi feito quando a casa da irmã de Evo Morales foi incendiada, quando a casa do presidente Evo Morales foi destruída ou quando sequestraram e espancaram à prefeita de Vinto, a companheira Patricia Arce, que também é uma mulher de enorme dignidade, que depois de ser torturada afirma sentir orgulho de sua filiação ao movimento socialista.
Pois é, incendiaram a casa do presidente da Câmara dos Deputados, sequestraram e torturaram seu irmão por mais de 3 horas, na cidade de Potosí, e o mesmo aconteceu com outros dirigentes, houve sequestro de parentes e os obrigaram a renunciar as lideranças. Todo esse contexto de violência ocorreu em nosso país e é fato inegável que até agora está em absoluta impunidade porque não é investigado. O assédio e a violência continuaram mesmo após o golpe, não apenas no fato da margem de impunidade que se abriu nas Forças Armadas com a promulgação de um decreto que as isentava de responsabilidade criminal por ações conjuntas, que se desenvolveu a polícia com as forças armadas na rua, contendo os protestos dos cidadãos. Discriminação e racismo se tornaram uma política a vontade do Estado. Nossos camaradas, para reintegrar as sessões da Assembleia Legislativa, tiveram que enfrentar a violência policial da Polícia, que impediu o acesso dos deputados ao Congresso. É claro que também tem assédio político, perseguição policial e a morte de muitos e muitos colegas. A discriminação e o racismo passaram a ser a vontade do Estado. E o Estado, com base nessa discriminação e nesse racismo, operou com forças repressivas, perseguindo parceiros. Dois dias depois do golpe, um policial estava do lado de fora do apartamento onde morava. Eles não precisam tirar um policial do apartamento onde morava, porque você sabe que eles o estão perseguindo, é claro. Mas era a vontade que se soubesse que essa perseguição existia. Foi um cenário complexo, mas devemos continuar lutando sempre pela democracia.
O golpe reacendeu as tensões raciais e étnicas que a figura de Evo Morales havia apaziguado. Em que medida a direita é responsável pelo ressurgimento das tensões raciais e do endoracismo no país?
O quadro a partir do qual saiu a oposição, ou seja, o seu quadro ideológico, foi justamente o uso de instrumentos opostos da fé, da religião, com a Bíblia à sua frente para conduzir as ações de Luís Fernando Camacho, como ajoelhar-se no pés do Cristo Redentor, um monumento simbólico em Santa Cruz. Ou a figura de Jeanine Añez, dizendo que a Bíblia volta ao Palácio. Mas o retorno da Bíblia, não com um olhar romântico, ou a mensagem de “o catolicismo retorna”, “a fé retorna”. Mas sim, como cortina de fumaça, e também como elemento civil, buscando civilizar os “selvagens” contra os quais lutou. A Bíblia se opõe à Whipala, por exemplo, várias organizações foram em defesa da Wiphala, como um símbolo da integração dos povos e resgate da memória. E a resposta foi impor uma violência civilizadora, contra o que Jeanine Añez chamou de “os selvagens das terras altas”, “os selvagens dos trópicos”, e sempre houve uma estigmatização e uma criminalização dos movimentos sociais, que resistiram ao golpe de estado com um heroísmo impressionante, e fundamentalmente motivado, porque o motor do golpe foi a normalização da violência e a vontade do governo de exercer violência sobre os mais humildes.
Qual foi o papel das organizações indígenas durante o governo do MAS e qual é o seu papel neste momento de crise democrática?
Acredito que o papel dos povos indígenas e do movimento camponês obviamente não começa com o processo, eles são construtores do processo de mudança, construtoras e construtores desta revolução democrática e cultural, a partir de um fato que é ter compreendido plenamente sua situação durante a República e de ter convertido a compreensão de sua situação e de sua condição de classe, não apenas em vontade mas em uma vocação de transformação, e também na transformação de slogans universais, como a nacionalização dos hidrocarbonetos, a convocação da Assembleia Constituinte, a valorização dos recursos naturais de empresas estratégicas, o reconhecimento do estado, da diversidade cultural, que deu origem ao Estado Plurinacional e ao reconhecimento da terra e do território. A necessidade de mudar a estrutura da posse da terra. Tudo isso foi a agenda de outubro, com a qual entra o governo do nosso camarada Evo Morales, o nosso governo. A partir daí, a atenção mais importante é desdobrada também em termos de transformação profunda, que é a Assembleia Constituinte.
Quais são os retrocessos em questões institucionais que mais se destacam na Bolívia hoje?
Desde o impacto do golpe na Bolívia, embora eu insista, são dívidas que nós também carregamos e ainda estão pendentes. São para mim os direitos das mulheres e dos grupos LGBTIQ. Devemos ver como podemos avançar no aprofundamento dos direitos das mulheres, pois ainda temos enormes lacunas de desigualdade. Há uma lacuna significativa de desigualdade, por exemplo, em questões como salários ou violência institucional. Temos normas que protegem as mulheres, mas precisamos avançar como sociedade nisso, e o problema do golpe foi esse, com aquele arcabouço que veio da racialização da discussão política e social, e as tensões que o golpe de Estado abriu, tudo o que veio por trás disso foi o que eu estava dizendo a vocês no início, a discriminação e o racismo viraram vontade do Estado e o uso da violência do Estado para violar os direitos humanos.
A principal reclamação de nossos colegas é a justiça para os massacres ocorridos em Senkata e Sacaba, e denunciar que o Estado estigmatiza regiões e criminaliza a pobreza neste momento, e que usa o que é de fato um Estado de exceção para combater a pandemia, e a sua única resposta à crise da saúde neste momento tem sido colocar todo o país em quarentena, sem que isso seja acompanhado por um aprofundamento do exercício dos direitos dos cidadãos. Essa é a maior ferida que temos na Bolívia, em termos de direitos, é justamente a maior fratura social que existe, baseada na vontade do Estado de discriminar certas regiões e exercer o racismo, o que leva a uma tremenda erosão democrática.
Em que ponto a religião influenciou o crescimento da extrema direita na Bolívia?
Não sei se a religião influencia o crescimento ou é a instrumentalização da fé como elemento de contraposição e oposição a um projeto político. É a instrumentalização da fé, no sentido em que a Bíblia e as crenças religiosas são utilizadas, ou as emoções geradas pela prática da fé, para justificar e esconder em segundo plano o que são racismo e discriminação. Insisto, a Bíblia foi usada como ferramenta e como instrumento “civilizador” contra os setores sociais mobilizados, acusando-os de selvagens, era a mesma coisa que fazia a colônia, a Bíblia na frente, quando a espada estava atrás, o padre na frente, quando atrás o exército armado estava lá para destruir e privar os povos indígenas do governo autônomo. E aqui era o mesmo.
Como o MAS e os setores populares propõem a reconstrução da ordem democrática no país e como a Bolívia se recupera após o golpe?
A Bolívia vive atualmente uma crise, igual a que o mundo atravessa: econômica, sanitária, financeira, com a interrupção dos ciclos produtivos que a tornam uma crise alimentar, mas uma crise democrática, social, política, uma crise multidimensional. E nesta crise, acho importante começar por compreender que as pessoas não esperam vingança do Movimento pelo Socialismo, quando regressam. O Movimento ao Socialismo contribuiu para transformar a realidade deste país, para transformar a história deste país. E acho importante voltarmos às melhores coisas que as pessoas lembram de nós, que foram os anos de crescimento e estabilidade econômica, que permitiram que as pessoas acomodassem suas vidas. O exemplo que mais me mobiliza, como vi na festa juvenil do MAS, é que muitos colegas foram os primeiros profissionais da família. Por exemplo, tem uma colega que é acusado de terrorismo, ele tem 26 anos, está na Argentina, no exílio, é filho de uma mulher que só fala quíchua, sobrevivente do terremoto, indígena, que provavelmente ao contrário, sua herança familiar não foi diferente, ela provavelmente também era indígena, provavelmente não teve acesso ao ensino fundamental, a mulher não é graduada do ensino médio, e acontece que seu último filho, o mais novo de todos, estudou engenharia de sistemas, se profissionalizou e também foi candidato a senador. Imagine todo o orgulho baixado para um menino de 26 anos, que não é só o orgulho de sua mãe, mas de gerações atrás. São muitos os exemplos, toda a história por trás disso, que nos dizem que com o nosso governo eles poderiam ter um profissional na família. Esse é o nosso processo de mudança, são as verdadeiras oportunidades que as pessoas começaram a ter. Insisto, Bolívia quando entramos no governo com o camarada Evo, 10% da população era analfabeta, minha avó morreu analfabeta, é daí que viemos. Essa é a medida do que éramos e com base nisso devemos comparar nosso progresso. Esta é uma geração que viu muitos direitos conquistados e que talvez milite muito mais atenta a isso, por isso é ativa no nosso partido. Mas essa é a nova Bolívia, são gerações inteiras que começam a conquistar direitos, que durante a República eram negados a toda a família. Tenho uma colega deputada, a Anacleta Murrío, de 60 anos, do Chaco, uma mulher de saia, uma camponesa, quíchua, que me diz que só estudou até o segundo ano. Porque as famílias camponesas naquela época tinham que escolher qual filho poderia estudar, o homem e o mais velho sempre estudavam, porque custava muito para os outros fazer isso, ou para evitar diminuir a força de trabalho que a família tinha para sobreviver, ou por causa do machismo, etc., imagine a lacuna acumulada ao longo dos anos, apenas em um direito que era o acesso à educação para as mulheres. As netas de Anacleta Murrio estudam hoje na universidade. Isso para nós faz parte do processo de mudança.
Você também chegou à presidência do Senado bem jovem.
Sim, eu tinha 29 anos naquela época e isso foi uma causa e também parte do processo, nossa revolução democrática foi a que permitiu que com a mudança da constituição a partir dos 18 anos você pudesse ser legislador e assumir todas as responsabilidades que isso implica. Antes de termos que esperar para entrar no Senado, era preciso fazer 30 anos para ser senador, eu não podia nem ser senadora. Isso foi possível graças ao processo de mudança, e há muitos exemplos de colegas que assumiram ministérios, como Manuel Canelas, ou a companheira Mariana Prado, Valeria Silva em La Paz, outra colega senadora, Anderson Cáceres, o atual presidente do Senado também tem um, se não estou enganada, de 33 anos, agora. Muitos jovens assumiram a responsabilidade do Estado, essa foi a abertura democrática que teve que transformar a nossa constituição política do Estado e a vontade política dos nossos colegas.
Por que foi importante incluir as vozes das mulheres na política boliviana?
Para começar, é uma demanda construída coletivamente de muitas organizações de mulheres, o movimento de mulheres camponesas, a organização de mulheres camponesas Bartolina Xixa. Somam-se também as companheiras da Organização das Mulheres Juana Azurduy e múltiplas organizações, além de grupos feministas que também têm sido um importante construtor dos referenciais teóricos da despatriarcalização. As camaradas se uniram na compreensão de algo que era central, tratando de questões não só do feminismo, mas da igualdade. Este exemplo simples significa que, se somos metade de cada povo, devemos ser metade de cada representação e somos iguais. Isso teve um impacto sobre nós termos a primeira conquista importante, que é a constitucionalização dos direitos das mulheres e a abertura de uma agenda de desenvolvimento, dos direitos das mulheres. Portanto, a nossa constituição política de Estado, por exemplo, incorporou especificamente que todos os bolivianos, a partir da língua, que toda e qualquer pessoa, e em particular as mulheres, e eu coloco ênfase aí, têm o direito de viver sem violência. Isso resulta em nossa lei abrangente de combate à violência contra as mulheres. Por exemplo, tendo constitucionalizado a paridade de gênero nas instâncias de representação legislativa, alcançamos a metade de mulheres e metade de homens na Assembleia Nacional, na Assembleia Departamental, nos conselhos municipais, nos menores territórios. Tem sido possível constitucionalizar, por exemplo, a estabilidade no emprego dos pais, principalmente das mulheres, até o filho completar um ano. Foi possível constitucionalizar, por exemplo, a incorporação desse princípio muito discutido, que é o reconhecimento do trabalho de casa, nos cofres nacionais do produto interno bruto. Reconhecer que é tarefa do Estado construir condições de equidade e igualdade no desenvolvimento dessas tarefas. Nossa conquista mais importante é ter deixado na constituição, não digo escrita na pedra, mas não submetida à vontade de um político, de um partido ou de uma liderança x, os nossos direitos. Mas constitucionalizada, conquistada, consagrada e essa é a nossa bandeira mais importante. A Bolívia tem 53% de participação feminina na política, afirmam várias fontes. Sim, e não só no campo da representação legislativa, mas também no campo judicial. Aconselhamos que haja paridade também nas instâncias judiciais, no Supremo Tribunal de Justiça, no Tribunal Constitucional, a representação também deve ser igual. A eleição dos membros do Tribunal Supremo Eleitoral e do órgão eleitoral, ou seja, esta se estabelece como política transversal de representação nas instituições do Estado, não apenas na esfera legislativa. Falta-nos executivos dos governos locais.
Como a presidência de Jeanine Áñez está lidando com a pandemia do Coronavirus, em relação aos casos de violência de gênero e à saúde pública em geral?
O principal problema para nós é que o discurso inicial é “o MAS não se preocupava com saúde há 14 anos”. Mas também não foi apresentada uma resposta alternativa para enfrentar a crise de saúde, que não passe pelos ditames de um estado de exceção que restringe direitos, ou seja, as quarentenas são estados de fato de exceção, além do fardo ideológico que pode-se depositar nisso, e a mobilidade fica restrita etc, mas aqui isso não foi acompanhado de um fortalecimento do sistema de saúde. A crise da saúde praticamente deixou sistemas de saúde muito mais robustos de joelhos, como na Itália ou na Europa. Mais robusto que os sul-americanos. Mas aqui a quarentena não é acompanhada por uma medida real do número de infecções, não apenas porque há mais infecções do que as registradas, mas porque os resultados de hoje são os mesmos de duas semanas atrás. Os testes de laboratório estavam saturados, e há testes não lidos, e desde 1º de junho há testes acumulados. O que existe é um sub-registro da mortalidade. Aqui em Santa Cruz, 50 corpos de pessoas são levantados todos os dias e cemitérios já desabaram. Era possível prever esse colapso, sim. O que não pode ser permitido é que uma pessoa seja obrigada a ficar em casa com uma pessoa que morreu de coronavirus, por mais de cinco dias, dentro de sua casa. Não é possível que não saibamos realmente quantas pessoas estão morrendo de coronavirus, ou que tivemos a possibilidade de salvar vidas, trazer respiradores, etc., e que o dinheiro foi roubado.
No contexto das próximas eleições, quais são as garantias para que Luís Arce possa concorrer à presidência de forma transparente?
São muito baixas, mas aqui estamos, não há outra forma de apostar na democracia a não ser através de um processo eleitoral. E é estranho, porque se gabaram de que houve uma fraude monumental, quando as urnas hoje nos dão números semelhantes aos que tínhamos em 2019, e as urnas hoje falam claramente que Arce, David e o Movimento ao Socialismo ganhariam a presidência na primeira rodada. Mas insisto, creio que espaços como este, que contribuem para tornar visível a situação e o contexto da Bolívia, nomeadamente devido à confluência da crise da saúde, da crise econômica e do golpe de estado, contribuem para tornar visível o que nos interessa, ou seja, como o próprio processo eleitoral avança. Não só no dia das eleições, mas também no contexto e nas condições em que se realiza o processo eleitoral. A condição de desigualdade que existe, porque o país está paralisado, mas o governo que é candidato ao mesmo tempo não está paralisado. O uso de publicidade estatal, disseram que não ia acontecer, hoje finalmente ocorre. Mas, além disso, a violação permanente dos direitos humanos e a perseguição sistemática aos nossos colegas. Da mesma forma, temos boas perspectivas, continuamos a refletir a vontade majoritária do povo boliviano e isso nos enche de esperança.