Passados um ano e meio da partida de Jair Bolsonaro, vale dar uma mirada nos subprodutos políticos que perduram e que podem levar a desdobramentos importantes do contexto e, até, do sistema político que vigora desde a promulgação da Constituição. Vale olhar, mais especificamente, para o Congresso, cujo protagonismo negativo chegou a um patamar inédito.

O deputado de extrema-direita Nikolas Ferreira (PL-MG) | Pablo Valadares / Câmara dos Deputados

Agora, temos uma bancada de extrema-direita com feições pós-modernas, muito mais voltada à produção e à disseminação de fake news para as redes sociais do que para o debate dos grandes problemas nacionais. Antiética e agressiva, essa direita radical e ululante é essencialmente destrutiva. É minoritária e se afirma sugando votos e energias das demais direitas. O seu paradoxo é precisar dessas outras direitas para aprovar qualquer coisa.

O Centrão também não é novidade, mas ganhou maior organicidade a articulação entre as bancadas “BBB”: do boi, da bala e da bíblia. Quando Bolsonaro, que só tinha o apoio da extrema-direita no início do mandato, decidiu entregar o poder de fato ao Centrão, reciclou a sua linha de coerência, reforçando o tempo todo aquela trilogia. Mas o artífice dessa aliança foi Arthur Lira (PP-AL), alçado à Presidência da Câmara, gestor do orçamento secreto.

Semipresidencialismo

Enquanto Bolsonaro é um eterno candidato a ditador, Lira é um adepto convicto do semipresidencialismo. O estilo caricato do primeiro combinou com o pragmatismo esfomeado do segundo. A apropriação pelo Congresso de uma enorme fatia do orçamento, por meio de vários tipos de emendas parlamentares, foi o amálgama dessa aliança.

(E-D) O ex-presidente Jair Bolsonaro, o senador Ciro Nogueira (PP-PI) e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) | Reprodução X

A apropriação do orçamento vai além das emendas parlamentares, atravessa os financiamentos e inclui os fundos partidário e eleitoral, também bilionários. Enquanto o país padecia com a pandemia e com o atraso da vacinação, o Centrão-BBBzão consolidava a sua autonomia orçamentária frente ao Executivo. Se, antes, os governos cooptavam parlamentares com emendas, agora precisam apelar a eles para a destinação de emendas a projetos determinados, tentando reduzir a pulverização dos investimentos federais.

É notável como Lira conseguiu avançar no seu projeto de semipresidencialismo, à revelia do plebiscito que escolheu o presidencialismo como regime de governo e sem promover alterações na Constituição. Mas parece que ainda falta uma facada final no coração da Presidência da República. Não necessariamente no do presidente Lula, já que a viabilidade parlamentar da facada pode depender de agendá-la para o próximo mandato, seja quem for o presidente.

Fricção

Com Bolsonaro no papel de espantalho político, a armação de Lira fluía melhor. As tentativas de golpe fracassaram, mas o orçamento paralelo consolidou-se. Porém, a pretensão de Lula de governar, além de representar, aumentou a fricção. Toda hora tem que ser revista e discutida a relação. Lula cede, mas espera pelo fim do mandato de Lira, que procura um sucessor que lhe permita tutelar o mandato de Lula até o fim.

(E-D) O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), presidente Lula e o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) | Bruno Spada / Câmara dos Deputados

Lira precisa de um sucessor que seja forte o suficiente para manter Lula sob pressão, e fraco o suficiente para não impedir o retorno dele à presidência da Câmara no início da próxima Legislatura. Enquanto isso, calcula quanto tempo político real ainda dispõe, até janeiro, para pautar novos retrocessos até o final do atual mandato.

Com Lira ou sem Lira, ninguém acredita que seja possível reverter a apropriação do orçamento pelo Congresso, o que passaria pela inimaginável situação do próprio Congresso subtrair o seu poder. A conquista de Lira é a mais consistente dentro da herança do Bolsonaro. Enquanto Lira transita entre mandatos, Bolsonaro tentará levar o Congresso a proclamar a sua própria anistia.

2026

Bolsonaro já é inelegível e está sujeito a novas condenações. O que ele pleiteia não é uma anistia, mas um indulto por crimes julgados e não julgados, com licença de impunidade para crimes futuros. Se o Congresso vier a aprovar tamanha aberração, ela cairá no STF. Pode valer como estratégia de tensionamento para facilitar a transferência de intenção de voto para outro candidato da extrema-direita.

Michele e Jair Bolsonaro | Carolina Antunes / PR

O projeto de Lira é esvaziar a Presidência da República, já que ele teria dificuldade numa eleição presidencial. O nome mais cotado é o de Tarcísio de Freitas (Republicanos), governador de São Paulo. Mas ele teria de abrir mão da disputa pela reeleição e de renunciar ao atual cargo em meados de 2026. Outro nome seria o de Ronaldo Caiado (União Brasil), governador de Goiás, que concluirá o segundo mandato em 2026 e não poderá se candidatar à reeleição. Ambos têm perfil de administrador e, se eleitos, tenderiam a querer governar, atritando-se com Lira.

Outra hipótese seria Michelle Bolsonaro, ex-primeira dama, o que poderia facilitar a transferência de votos. Mas o próprio Bolsonaro não parece animado e parece mais propenso a apoiar uma candidatura dela ao Senado. Mas seria uma hipótese bem mais palatável para o Lira, que poderia governar com mais tranquilidade, desde que ela priorizasse o papel de missionária e de colecionadora de jóias.

2024

No caminho para 2026, teremos as eleições municipais em outubro desse ano. A movimentação política é intensa. Lula, Bolsonaro, governadores e parlamentares articulam o lançamento de candidatos, mas ainda há muitas indefinições e o prazo para as convenções partidárias vai até 6 de agosto. No geral, parece que os governadores prevalecem nesse processo, sobretudo nas menores cidades. A tendência é de partidos à direita elegerem mais prefeitos, o que costuma ocorrer em eleições municipais, mas é provável que a extrema-direita, como o PL, conquiste espaços dos partidos do Centrão, como o MDB, em algumas regiões.

(E-D) O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos); o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB); o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-RJ) e Jair Bolsonaro | Reprodução X

Mais imprevisíveis são as eleições nas capitais e em outras grandes cidades, onde possa haver segundo turno se nenhum candidato obtiver mais de 50% dos votos válidos para prefeito. A campanha pública ainda não começou e falta muito tempo para o primeiro turno, o que torna precárias as pesquisas eleitorais disponíveis. Elas indicam, por hora, poucos nomes com chances de vencer no primeiro turno, como Eduardo Paes (PSD), no Rio, e Bruno Reis (UB), em Salvador.

Bolsonaro parece mais aberto a eventuais alianças com o Centrão, como em São Paulo e Campo Grande, mas enfrenta dissidências na extrema-direita. Lula também enfrenta dificuldades, com poucos candidatos fortes do PT e com alianças desconfortáveis para os seus militantes em algumas cidades, inclusive Rio de Janeiro e São Paulo. Por mais que se esforcem, não parece que a polarização político-ideológica vá prevalecer nessas eleições.

Certamente a extrema-direita abusará das fake news e das questões mais vinculadas a valores morais, como aborto, uso de drogas e de armas de fogo, estranhas às competências municipais, para angariar votos fáceis. Por outro lado, a vulnerabilidade climática dos municípios deverá chamar maior atenção e vamos ver como se comportarão os eleitores de Porto Alegre e de outras cidades arrasadas por catástrofes recentemente. O histórico de negacionismo da direita não a ajuda nesses casos.

São Paulo SP 29/06/2024 O presidente Luiz Inácio Lula da Silva participa, neste sábado (29), do lançamento da pedra fundamental do campus Zona Leste da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e do campus Cidade Tiradentes do Instituto Federal de São Paulo (IFSP). Foto Paulo PInto/Agencia Brasil