Por Isabel Lima e Emily Maya Almeida / Justiça Global*

Neste dia 10 de outubro – dia que marca a ações da Organização Mundial da Saúde (OMS) pelo direito humano à saúde mental –, o Supremo Tribunal Federal (STF) começa a julgar quatro ações contrárias à resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de fevereiro que determinou o fechamento dos hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico e a transferência de internos para atendimento nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPs).

A resolução institui a Política Antimanicomial do Poder Judiciário, aprovada em fevereiro do ano passado, e estabelece que o tratamento de pessoas com transtornos mentais que estejam cumprindo medidas de segurança deve ser priorizado em ambulatórios, com acompanhamento judicial e da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do SUS. Internações compulsórias são tratadas como exceções, a serem evitadas ao máximo.

A implementação dessa medida já deveria ter ocorrido há muito tempo, conforme determina a Lei Federal 10.216, conhecida como a Lei da Reforma Psiquiátrica, de 2001. Também é respaldada pela Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Brasil em 2009. E, mais especificamente, foi elaborada no âmbito de um grupo de trabalho do CNJ criado como desdobramento da condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos em 2006 pela morte de Damião Ximenes Lopes, encerrado no ano passado

Internado em uma clínica psiquiátrica conveniada ao SUS no interior do Ceará, Ximenes foi torturado e morreu em 1999. O caso, denunciado pela irmã, Irene Lopes, e pela Justiça Global, pressionou para que o Brasil revisse suas práticas em relação à saúde mental, abandonando o modelo de confinamento e maus-tratos em favor de um modelo centrado no cuidado em liberdade e no respeito aos direitos humanos – conforme a Reforma Psiquiátrica. 

Há muita desinformação em torno desse tema, disseminada sobretudo por setores da sociedade que colocam como contraponto políticas que favorecem comunidades terapêuticas, bem como a recomposição dos manicômios, medidas que vão na contramão da legislação brasileira e dos parâmetros internacionais. Por causa desses questionamentos, a aplicação da medida vem sendo sucessivamente adiada. 

Uma pesquisa do CNJ em parceria com o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), de setembro deste ano, revela que o perfil majoritário das pessoas internadas em Estabelecimento de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (ECTP) mostra que o confinamento nos hospitais de custódia decorre, em muitos casos, de delitos de baixa significância cometidos por usuários de drogas, pessoas em situação de rua ou em sofrimento psíquico. 

São sobretudo homens com transtorno mental decorrente de uso de álcool ou outras

drogas, entre 30 e 49 anos de idade, pouco escolarizado, solteiro, negro, sem filho – e não “assassinos em série” ou outros perfis que os autores das ações na pauta do STF recorrem em seus argumentos para disseminar um pânico moral na sociedade. Atualmente, os números do Ministério da Justiça aponta que, de 2.736 pessoas com transtorno mental cumprindo medida de segurança, apenas 21% (586) recebem atendimento ambulatorial.

Os dados evidenciam demandas urgentes: o fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial e do SUS, de políticas públicas intersetoriais, o enfrentamento da questão do álcool e outras drogas como uma questão de saúde pública, como de fato é, e um debate mais aprofundado na sociedade brasileira, inclusive entre os profissionais de saúde e os atores do sistema de justiça, sobre saúde mental e direitos humanos no sentido do cuidado em liberdade.

* Isabel Lima é psicóloga, mestra em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ) e coordenadora na Justiça Global.

* Emily Maya Almeida é jornalista, mestra em Comunicação e Cultura (UFRJ) e assessora da Justiça Global.