“Desculpa, moço”

Não é apenas um ato falho, mas a confissão da persistência do preconceito e da discriminação, mesmo diante da ameaça do dano.

A diversidade é a marca do Brasil. Biológica, sim, nos seus diversos biomas, formações florestais, paisagens naturais e situações geográficas. Diversidade também humana, étnica, racial, cultural e de múltiplas origens. Centenas de povos originários e de idiomas, migrantes de todos os lugares, asiáticos, africanos, europeus e latino-americanos. Umbandistas, budistas, muçulmanos, judeus, agnósticos, politeístas e ateus. Cristãos evangélicos, católicos, espíritas e ortodoxos.

Milhões de pessoas participam da Parada LGBT+ e, outros milhões, da Marcha para Jesus. Torcidas lotam estádios e multidões frequentam shows de vários gêneros musicais.

O respeito pela diferença é o nosso maior ativo para a paz. Mas a intolerância é o grande passivo, lastro da violência, conduto para o sofrimento e para a decadência.

INTOLERÂNCIA

A violência permeou a formação do Brasil como país. Colonização, escravidão, machismo, elitismo e discriminação caracterizam esse processo. Mas o integracionismo, a miscigenação e a submissão política consentida produziu e manteve, por muito tempo, a falsa ideia da cordialidade brasileira, ressaltada pela comparação com outros países que passaram por traumas históricos ainda mais violentos. Mas a urbanização e a modernização assimétrica do país, acirraram e tornaram evidentes agudas injustiças sociais, evaporando a ilusão da cordialidade.

O Anuário de Segurança Pública de 2024, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, aponta redução de homicídios no país. Porém, ele revela o aumento dos casos de violência policial, de agressões contra crianças e de feminicídios, assim como de todos os demais tipos de violência contra mulheres. O que demonstra o agravamento da intolerância.

O Dossiê sobre Assassinatos e Violências contra Travestis e Transexuais Brasileiras em 2023, feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA), acusa 145 assassinatos de pessoas transexuais no ano passado, o que representa um aumento de 10,7% em relação a 2022, em outro indicativo da escalada da intolerância.

HIPOCRISIA

Um caso ocorrido nesta semana, que até poderia ser considerado banal diante de tanta violência, foi, no entanto, emblemático da hipócrita “cordialidade” brasileira. A transexual Vitória País, que é maquiadora profissional em Assis (SP), foi conhecer uma casa de lanches, denominada Contêiner, na cidade vizinha de Paraguaçu Paulista. Ela tinha boas referências do local, como alimentação bem preparada e ambiente aprazível.

A certa altura, Vitória recorreu à toalete feminina, que estava ocupada, e ficou esperando sua vez, quando a esposa do dono do estabelecimento, que também esperava na fila, disse que “ele” deveria usar a toalete masculina, que estava disponível. Como ela insistiu em permanecer na fila, a suposta proprietária chamou os seguranças para retirá-la. Como Vitória resistiu, foi derrubada e agredida, o que produziu vários hematomas no seu corpo.

Ainda assim, Vitória quis pagar a conta e se retirar, mas foi retida pelos seguranças em uma sala anexa, dado o receio do dono com a provável repercussão negativa do ato de violência. Tentando abafar o caso, ele dizia, repetidas vezes, uma frase singela e emblemática: “Desculpa, moço”!

Dizem os psiquiatras que os psicopatas não se arrependem dos crimes que cometem. Apenas se ressentem, quando se veem afetados pelas consequências deles. “Desculpa, moço” não é apenas um ato falho, mas inclui a confissão da persistência do preconceito e da discriminação, mesmo diante da ameaça do dano.