“Debaixo de vara”
O ex-ministro da Justiça Sérgio Moro deixou o governo denunciando a tentativa do presidente Jair Bolsonaro de violar a autonomia da Polícia Federal para nomear e demitir superintendentes e manipular investigações que envolvam ele próprio, seus filhos e seguidores.
O ex-ministro da Justiça Sérgio Moro deixou o governo denunciando a tentativa do presidente Jair Bolsonaro de violar a autonomia da Polícia Federal para nomear e demitir superintendentes e manipular investigações que envolvam ele próprio, seus filhos e seguidores. O procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu ao STF a instauração de um inquérito para apurar a grave denúncia e o ministro Celso de Mello, relator do caso, aceitou o pedido. Procuradores e delegados foram designados para conduzir o inquérito e Moro já foi ouvido em depoimento de mais de oito horas de duração.
Bolsonaro, seus advogados públicos e assessores próximos comemoraram o sorteio de Celso de Mello como relator porque ele será compulsoriamente aposentado em novembro próximo e seu substituto será indicado por Bolsonaro. Bastaria obstruir o andamento do inquérito até novembro e, então, deixá-lo morrer nas mãos de um novo ministro subalterno. Percebendo a intenção dolosa do presidente, Mello, que não é covarde como outros e nem pretende encerrar sua carreira como se fosse um idiota a serviço de um crápula qualquer, vem fixando prazos exíguos para depoimentos e apresentação de provas, deixando claro que pretende concluir o inquérito antes de novembro.
Dizem as paredes do Palácio do Planalto que Bolsonaro anda xingando a progenitora e amaldiçoando toda a descendência de Aras, por ele ter solicitado a abertura do inquérito em vez de simplesmente ignorar a denúncia de Moro. Bolsonaro entende que o procurador-geral deveria ser seu advogado e jamais poderia ter dado espaço a um adversário, mesmo que só tenha se tornado seu inimigo agora.
Os atos iniciais de Celso de Mello geraram dois sobressaltos para o presidente: a convocação de ministros e outras autoridades para deporem como testemunhas e a requisição da gravação de uma reunião ministerial em que Bolsonaro ameaçou Moro de demissão, caso não substituísse o diretor-geral da Polícia Federal. O governo tentou esconder a gravação, depois pediu para entregar somente um trecho editado, mas acabou tendo que entregá-la na íntegra. O problema é que ela inclui passagens picarescas, como a do ministro da (falta de) Educação dizendo que todos os onze ministros do STF são “filhos da puta”. O Planalto espera que Celso de Mello considere apenas declarações sobre o crime investigado, ignorando os demais.
Frisson ainda maior rolou por causa da convocação para outros depoimentos, que incluiu procuradores, uma deputada federal e os três ministros generais palacianos: Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional; Walter Braga Netto, ministro-chefe da Casa Civil; e Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo.
É que os generais ficaram indignados com os termos da convocação, que prevê, em caso de ausência sem motivo justo, que eles sejam conduzidos de forma coercitiva à presença do juiz “sob vara”. Considerando que têm fichas criminais limpas e uma carreira militar bem sucedida, eles entenderam como desrespeitosa a aplicação da expressão.
Na verdade, essa palavra – “vara” – é meio obsoleta e esteve inscrita na legislação penal do tempo do Império, que dizia que o juiz deveria dispor, literalmente, de duas varas durante a audiência. O atual Código Penal, no seu artigo 218, diz: “se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar que seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública”. Significa que se a testemunha convocada não atender à convocação sem justo motivo, deverá ser conduzida à força.
Não é mais do que uma obviedade legal, mas não deixa de ser bem desagradável receber uma intimação nesses termos, mesmo que não se trate de general, nem ministro, nem cúmplice de Bolsonaro. Os generais magoaram-se por se sentirem tratados “como bandidos”, o que também já é um exagero, pois foram intimados como testemunhas, sendo que o papel de bandido, no caso, é do presidente.
Mas o episódio é emblemático do quanto a imagem pervertida do presidente está pervertendo a imagem dos seus ministros generais. Se Bolsonaro ofende publicamente os ministros do STF, convoca manifestações para propor o seu fechamento e ainda confessa que quer transformar a PF à sua imagem e semelhança, e os generais compactuam, ou se omitem, diante disso tudo, também não deveriam esperar tratamento privilegiado.
O que parece é que os ministros generais estão embevecidos pelo poder e perdendo o sentido das ruas. Não parecem dispor de assessoria competente para aferir e lhes informar o impacto que a sua presença em um desgoverno desmoralizado provoca sobre as suas imagens pessoais e do Exército. Mas bastaria olharem a manifestação de hoje contra a ordem democrática, com a presença de veículos aparentemente do Exército… Bolsonaro foi longe demais na afronta à Constituição e à vida dos brasileiros. Há um velho ditado que diz: “Diga-me com quem andas e te direi quem és!”