No dia 7 de janeiro de 2025, às vésperas da tentativa de golpe de 8 de janeiro de 2023 completar dois anos, Mark Zuckerberg, segundo homem mais rico do planeta e detentor de uma fortuna estimada em mais de 1 trilhão de reais, chantageou o mundo: afirmou que atuaria em parceria com a administração Trump para barrar o avanço da regulação de suas empresas em qualquer país onde isso ocorresse. 

Sob o argumento de que Europa e América Latina estariam impondo obrigações excessivamente onerosas a sua companhia, Zuckerberg declarou que a única forma de conter essa tendência global seria com o respaldo do novo governo dos Estados Unidos, cuja posse ocorreria 13 dias após seu comunicado.

O contexto da declaração de Zuckerberg remete àquilo que Nancy Fraser, autora de Capitalismo Canibal, identifica como uma das condições de existência da sociedade e da economia capitalista: a capacidade das corporações de interferirem nas políticas dos Estados nacionais para moldá-las a seus interesses, ainda que essa interferência resulte na canibalização, corrupção e enfraquecimento das instituições que sustentam o próprio sistema. Trata-se, segundo Fraser, de uma contradição interna da sociedade capitalista.

A ameaça de Zuckerberg, contudo, não é um fato isolado no tempo. Em 2023, durante as discussões sobre o PL 2630, as plataformas digitais promoveram forte lobby no Congresso Nacional, buscando impedir o avanço do projeto. Essa atuação voraz e antiética gerou reações judiciais: o então presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), chegou a enviar à Procuradoria-Geral da República uma notícia-crime contra diretores e representantes das plataformas, apontando uma “contundente e abusiva ação” contra o projeto. A PGR, por sua vez, solicitou ao Supremo Tribunal Federal a instauração de inquérito, o que foi deferido pelo ministro Alexandre de Moraes. No relatório final, a Polícia Federal concluiu que Google e Telegram atuaram com abuso de poder econômico, manipulação de informações e violações à ordem de consumo. Esta é a história pública.

Há, porém, a história ainda encoberta. Após a aprovação do requerimento de urgência do projeto de lei, parlamentares (no plural) relataram a este articulista que se sentiram ameaçados por lobbistas das plataformas digitais, mediante insinuações de que suas posições na votação poderiam resultar em redução do alcance de suas contas nas redes controladas por essas empresas. Noutra ocasião, um representante do governo brasileiro relatou ter se sentido coagido quando, durante conversa com lobbistas, foi informado de que, caso o texto avançasse, um determinado bilionário viria ao Brasil para “acertar as coisas”.

Esses fatos, ainda ocultos por conta do temor dos parlamentares e autoridades de sofrerem represálias, ilustram precisamente o processo de canibalização institucional descrito por Fraser. Parlamentares temerosos de votar de acordo com seu livre convencimento e representantes do governo brasileiro sentindo-se chantageados por lobbistas pintam o retrato de corporações de tecnologia que buscam se colocar como “novos soberanos”, em substituição ao Estado, como descreveu Max Fisher em A Máquina do Caos.

Em 2024, outro episódio reforçou essa tendência: Elon Musk passou a descumprir sistematicamente ordens do Supremo Tribunal Federal e articulou, junto a congressistas estadunidenses, a abertura de uma investigação legislativa contra as decisões da Suprema Corte brasileira. Em outras palavras, Musk utilizou seu poder econômico para mobilizar o Congresso dos EUA a agir como instância revisora das decisões do STF. O Congresso estadunidense, nesse episódio, atuou em defesa dos interesses econômicos de um multibilionário, tentando impedir que decisões soberanas da Justiça brasileira afetassem seus negócios.

É nesse contexto que se inscrevem as tarifas impostas por Trump ao Brasil e a investigação aberta pelos EUA contra o país. As tarifas de 50% anunciadas pelo presidente norte-americano vieram acompanhadas de justificativas que, explicitamente, mencionavam a decisão do STF de conferir interpretação conforme ao artigo 19 do Marco Civil da Internet. Um dos principais pontos da decisão foi o estabelecimento da responsabilidade solidária — e da presunção de ciência — dos provedores de aplicação em relação a conteúdos de natureza publicitária. Ou seja, as redes sociais precisam se responsabilizar pelos anúncios que aceitam publicar.  Os balanços da Alphabet (controladora de Google, YouTube, Gmail etc.) de 2025 indicam que mais de 75% do faturamento da empresa decorre da publicidade. No caso da Meta, os balanços mostram que mais de 90% da receita tem essa mesma origem.

Ao decidir dessa forma, o STF golpeou o modelo de negócios central das plataformas digitais: a publicidade digital ilícita. O argumento aqui é que o modelo de negócios dessas plataformas não se resume à publicidade, mas sim à publicidade fraudulenta e ilícita. Matéria recente do Washington Post revelou que mais de 70% de todas as novas contas de anunciantes criadas na Meta destinam-se à prática de golpes e fraudes contra consumidores. Sim, 70% de todas as contas de anunciantes criadas diariamente nas plataformas da Meta têm como finalidade veicular publicidade fraudulenta.

Na última terça-feira (15 de julho), a história ganhou um novo capítulo. O governo dos EUA instaurou uma investigação sobre as práticas comerciais do Brasil, alegando que o sistema de pagamentos brasileiro, o Pix, prejudica empresas norte-americanas. O episódio revela um incômodo antigo das big techs, especialmente da Meta, com o sucesso da plataforma de transferências brasileira. Isso porque a Meta pretendia lançar o WhatsApp Pay no país, mas o êxito do Pix entre os brasileiros tornou o sistema de pagamentos do WhatsApp um fracasso por aqui.

O Pix é um patrimônio do povo brasileiro e caiu nas graças do país e do mundo, sendo reconhecido como um dos sistemas de pagamento mais avançados do planeta. Não por acaso, o sistema brasileiro já é aceito em estabelecimentos comerciais dos Estados Unidos, da Argentina, Portugal, Chile e Uruguai.

Em um momento em que cresce no mundo todo a preocupação com a segurança dos dados dos usuários no ambiente digital, é absurdo que Trump também questione a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) brasileira justamente por dificultar a venda de informações pessoais dos cidadãos brasileiros. O episódio mostra o nível de desrespeito à soberania de nosso país.

Por isso, os brasileiros têm reagido fortemente à investida de Trump e das plataformas contra o Pix, com a expressão BOLSOTRUMP CONTRA O PIX ocupando o topo dos trending topics no Twitter por mais de 24 horas. A reação brasileira não deve ser isolada. A intromissão das grandes corporações na política tem uma consequência nefasta para todas as nações não-hegemônicas: a substituição do interesse público pelo interesse financeiro. 

Humberto Ribeiro é cofundador e diretor jurídico do Sleeping Giants Brasil