Custo Aluno Qualidade (CAQ) regulamentado: uma revolução pode acontecer na educação
por Alessandra Pelandra A luta por financiamento público adequado para cada uma das escolas do país venceu mais uma batalha Na última semana,o Congresso Nacional regulamentou um mecanismo de financiamento da educação pública dentro do recém-criado Sistema Nacional de Educação (SNE; PLP 235/2019). A própria criação do SNE – que aguarda sanção presidencial e, depois […]
por Alessandra Pelandra
A luta por financiamento público adequado para cada uma das escolas do país venceu mais uma batalha
Na última semana,o Congresso Nacional regulamentou um mecanismo de financiamento da educação pública dentro do recém-criado Sistema Nacional de Educação (SNE; PLP 235/2019). A própria criação do SNE – que aguarda sanção presidencial e, depois disso, também precisa de regulamentação – representa uma conquista reivindicada há décadas. No entanto, trago à sua atenção aquela que consideramos uma das principais conquistas do texto do SNE: o Custo Aluno Qualidade (CAQ), mecanismo que prevê um padrão mínimo de qualidade para a educação pública.
Uma sigla de três letras pode significar pouco para quem não é da política educacional, mas, em breve, esperamos que ela se torne realidade na vida de cada estudante do país. Nós acreditamos e trabalhamos para que o CAQ – que traduz em valores o quanto o poder público precisa investir por aluno ao ano, em cada etapa e modalidade da educação básica – inicie uma revolução na educação brasileira.
Conceito materializado pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação há mais de 20 anos, o CAQ já havia sido constitucionalizado na aprovação do novo e permanente Fundeb (Emenda Constitucional nº 108/2020) – o principal fundo da educação básica – após intensa mobilização. Com a regulamentação no SNE, ressalvados os desafios para a sua implementação, é possível vislumbrar que o CAQ pode desencadear transformação histórica na educação pública brasileira.
A lei aprovada garante o financiamento por meio do CAQ para todas as escolas públicas em território nacional, assegurando:
I – jornada escolar mínima nos estabelecimentos de ensino;
II – adequada razão professor-aluno por turma;
III – formação docente adequada às áreas de atuação;
IV – existência de plano de carreira e de piso salarial profissional nacional dos profissionais do magistério público;
V – nível de profissionalização e de qualificação dos profissionais da educação não docentes;
VI – estrutura física e instalações escolares com padrões de conforto ambiental, espaços apropriados para o desenvolvimento integral do processo pedagógico, salubridade, água potável e instalações sanitárias adequadas, acessibilidade e sustentabilidade ambiental;
VII – recursos educacionais e tecnologias digitais;
VIII – serviços complementares de apoio ao aluno.
Cite e o CAQ
A Comissão Intergestores Tripartite da Educação (Cite) será a principal instância permanente de pactuação federativa do SNE. De âmbito nacional, ela deve ter a composição de representantes da União – incluindo o Ministério da Educação (MEC) –, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios.
É a Cite que vai formular diretrizes e aprovar a metodologia para o cálculo do CAQ, que será calculado pelo MEC “com base em estudos técnicos elaborados pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) e, caso necessário, a critério da Cite, por outras instituições e órgãos públicos por ela designados”.
Embora a Cite, que está sob a coordenação do MEC, tenha a competência de pactuar sobre “o padrão mínimo de qualidade do ensino na educação básica de que trata o § 1º do art. 211 da Constituição Federal” e, em paralelo, “a aprovação da metodologia de cálculo do CAQ para a educação básica”, o texto da nova Lei é claro, em seu Art. 41: “fica estabelecido o CAQ como referência de investimento por aluno da educação básica, que será progressivamente elevado de modo a contribuir para a consecução das metas de financiamento da educação básica do PNE [Plano Nacional de Educação]”.
Isso significa que o financiamento público no SNE não se desvia do conceito constitucional da garantia de condições de qualidade de oferta. Sua metodologia e implementação devem manter essa previsão da Carta Magna.
Na implementação, vamos lutar para que seja consolidada a função supletiva da União no repasse de recursos financeiros, prevista pela Constituição Federal de 1988. Dessa forma, com base no CAQ, entes federados que não atinjam o valor de referência receberão complementação correspondente, para chegar ao padrão mínimo de qualidade, garantindo o caráter equitativo e redistributivo do Sistema.
Trajetória até a regulamentação
O CAQ nasceu como um conceito a partir de uma pergunta: o que toda escola deve ter para que uma educação de qualidade seja garantida? E quanto isso vai custar?
O CAQ assegura um padrão mínimo de qualidade para todas as escolas ao prever as condições e a estrutura necessárias para a implementação do processo de ensino-aprendizagem de forma efetiva, conforme previsto na Constituição Federal de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/1996) e no Plano Nacional de Educação (Lei nº 13.005/2014), entre outras leis. Assim, cada instituição escolar poderá fazer suas próprias escolhas pedagógicas de acordo com sua realidade.
O CAQ calcula valores referentes às condições adequadas e aos recursos materiais e humanos imprescindíveis para que os professores ensinem e os estudantes aprendam. Essas condições se refletem em quatro dimensões:
– Estrutura e financiamento;
– Valorização dos profissionais da educação;
– Gestão democrática escolar;
– Acesso e permanência.
Ou seja, todas as escolas devem contar com boa remuneração e plano de carreira para os profissionais, número adequado de alunos por turma, infraestrutura adequada, biblioteca, laboratório de ciências, qualidade de conectividade, alimentação nutritiva, transporte escolar digno, quadra poliesportiva coberta, banheiros, água potável, rede de esgoto e energia elétrica, entre outros.
Essa é a luta pelo CAQ. No Sistema Nacional de Educação, contudo, apesar da previsão constitucional, o conceito sofreu tentativas de deturpação.
“Um debate que merece atenção, e que foi trazido pelo texto da Câmara, é considerado um equívoco: vincular o padrão mínimo de qualidade à garantia de resultado. O resultado da melhoria da educação é um efeito; ele não pode ser a base do financiamento ou do padrão de qualidade, pois é a consequência, não a causa. Ainda, o texto do PLP do SNE é regulador da Constituição e não pode criar novos conceitos”, afirmei em audiência pública no Senado, no final de setembro. O CAQ vinculado a resultados resistiu na Câmara graças à articulação de parlamentares e entidades comprometidas ao direito à educação.
Até a manhã do mesmo dia da votação no Senado, o texto ainda estava pendente de relatório, e a versão então apresentada vinculava o CAQ a resultados educacionais. Grupos ligados à elite empresarial nacional fizeram articulação para concretizar esta perspectiva meritocrática, mas a mobilização da Rede da Campanha e de entidades do campo do direito à educação impediu que essa medida avançasse.
Após diálogos com a bancada do Partido dos Trabalhadores (PT), a base do Governo e a relatora do projeto, senadora Professora Dorinha Seabra (UNIÃO/TO), foi possível a apresentação de um novo parecer. A nova versão do relatório retirou a vinculação entre o CAQ e os resultados educacionais, preservando o princípio da qualidade social da educação.
Outras conquistas do SNE
Equidade
Outro ganho fundamental pode ser a superação das desigualdades educacionais, com o Sistema tendo como objetivo central a equidade. Isso significa destinar mais recursos e esforços para as redes de ensino e populações em situação de maior vulnerabilidade, combatendo assim disparidades regionais, raciais e socioeconômicas — por meio da articulação federativa e da gestão democrática com participação popular.
Territórios etnoeducacionais
O SNE reconhece as identidades e as especificidades socioculturais, territoriais e linguísticas dos povos indígenas, quilombolas e das demais comunidades tradicionais. Há fortalecimento do arcabouço legal para as garantias de efetivação da educação escolar indígena e da educação escolar quilombola.
O que ainda é preciso ajustar no SNE
A Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), que integra o Comitê Diretivo da Campanha, aponta que o Senado não avançou em pontos que poderiam “(i) melhorar a regulação da oferta privada de ensino; (ii) vincular efetivamente os sistemas educacionais às orientações das instâncias gestoras do SNE; (iii) consolidar as bases para a construção do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica – Sinaeb; (iv) responsabilizar efetivamente os gestores que descumprirem os regramentos educacionais e (v) apontar novas fontes de recursos para viabilizar a implementação do Custo Aluno Qualidade”.
Quanto aos pontos de atenção durante sua execução, é importante compreender que a simples criação da lei não é suficiente. É primordial ficar de olho para que o sistema não se torne um instrumento de controle burocrático-centralizador por parte do governo federal, respeitando a autonomia dos entes federados e das escolas dentro de uma lógica de colaboração.
Outro ponto central é garantir que a participação social não seja apenas formal ou cosmética, mas que os mecanismos como fóruns e conselhos tenham poder deliberativo e representação paritária da sociedade civil.
A implementação do Sistema também não pode ser usada como justificativa para reduzir ou desviar recursos; pelo contrário, é necessário ampliar o financiamento e garantir que ele chegue às redes de forma equitativa, garantindo a qualidade da oferta a que se propõe. A efetividade do sistema está intrinsecamente ligada à valorização dos profissionais da educação, com a garantia de planos de carreira, salários dignos e melhores condições de trabalho.
É preciso monitorar constantemente se as políticas estão de fato priorizando as populações em maior situação de vulnerabilidade, para superar as desigualdades, assegurando que o sistema não seja inerte às diferenças.
Por fim, a operacionalização da lei demanda atenção extrema: detalhes sobre a composição dos fóruns, sua participação social e a plena implementação do CAQ precisam estar bem detalhados para evitar interpretações que possam enfraquecer todo o sistema.
Mudança: o novo está mais perto
É muito difícil perceber quando uma mudança sistêmica está no horizonte. Mas, por conta da luta social de muitos, ao longo de anos — muitas vezes fora dos holofotes da mídia e dos algoritmos —, o novo começa a se impor sobre o antigo.
A situação atual é conhecida por todos brasileiros: milhares de escolas – principalmente no Norte e no Nordeste, afetando sobretudo pessoas negras, indígenas e quilombolas – não têm banheiro, água potável, saneamento, esgoto ou luz elétrica. Cerca de 1,4 milhão de estudantes estudam em escolas sem acesso a água potável, e 440 mil em escolas sem banheiro. Sobre saneamento, apenas 48,2% das unidades estão conectadas à rede pública de esgoto, e mais de 20% ainda não têm serviço de coleta de lixo.
Essa situação pode ser superada nos próximos anos, com a recente regulamentação de um mecanismo de financiamento da educação pública que nasceu na sociedade civil e, agora segundo a legislação, deve transformá-la em seus próprios termos.