Há duas semanas, estive no Palais Wilson, em Genebra, participando da pré-sessão do Comitê dos Direitos da Criança da ONU, junto com Daniel Cara, coordenador honorário da Campanha e Professor na FEUSP, e Sara Nidian, do Consórcio das Juventudes do Nordeste. Enquanto uma das 11 organizações da sociedade civil brasileira presentes e levando a agenda do direito à educação, fomos interpelados pelos especialistas do Comitê sobre questões cruciais e denúncias relacionadas à educação no Brasil, acumuladas ao longo dos últimos 10 anos. A troca foi intensa e revelou o quanto nossa luta precisa ser fortalecida diante dos enormes desafios.

Financiamento, qualidade e estrutura das escolas e privatização

O especialista F. Marshall Harris focou-se no financiamento da educação. O Prof. Daniel Cara abordou a necessidade urgente de garantir o CAQ (Custo Aluno-Qualidade) e a implementação do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb), para assegurar a qualidade e a infraestrutura adequadas nas escolas, ambos com atrasos de anos em sua regulamentação e aprovação – o CAQ, de acordo com o Plano Nacional de Educação, deveria ter sido implementado no Brasil desde 2017. Cara destacou que o PIB do Brasil, de 1,92 trilhões, deveria destinar 10% à educação, o que equivale a 192 bilhões. No entanto, na prática, apenas 96 bilhões são investidos. Além disso, artigo de Pellanda, publicado pela Fineduca, revela que metade dos Princípios de Abidjan, de regulação da atuação do setor privado na educação, não foram incorporados à legislação nacional. Outro ponto preocupante levantado foi o fechamento de escolas, especialmente no campo, que agrava ainda mais as disparidades educacionais.

Luis Pedernera questionou sobre as proposições legislativas que retrocedem os direitos educacionais. Comentamos sobre a Emenda Constitucional 95, que congelou os investimentos em áreas sociais e que ainda não foi revogada, e que está dando lugar a um arcabouço fiscal que ameaça os pisos para a educação e a saúde.

A falta de regulamentação sobre o uso da internet e tecnologias na educação, especialmente com a implementação das Escolas Conectadas, foi outro ponto sensível, ainda mais grave quando consideramos que empresas como Starlink estão envolvidas sem qualquer garantia de proteção de dados estudantis, mencionei ao responder aos questionamentos de Pedernera.

Ataques à educação: agronegócio, educação domiciliar, discriminação de gênero e raça, militarização de escolas

Outras proposições legislativas que ameaçam a educação destacadas por nós foram aquelas ligadas ao agronegócio, que afetam diretamente o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que constam em nosso mapeamento Educação sob Ataque. A proposta de descriminalizar o homeschooling (educação domiciliar) também foi apontada como ameaça significativa.

Outro especialista, Idrissin, perguntou sobre os ataques armados às escolas, tema que Daniel tratou com profundidade, com o histórico de nossa atuação primeiramente na apresentação de relatório no período de transição governamental em 2022, em que Cara fez parte da coordenação de educação da transição, e em 2023, em sua relatoria no GT sobre o tema no MEC. Ele destacou, ainda, após questionamento de acompanhamento por parte dos comissionados sobre o tema, especialmente de Harris, o aumento estarrecedor da militarização das escolas no Brasil, que cresceu 344% nos últimos seis anos, afetando diretamente cerca de meio milhão de crianças e adolescentes em 23 estados e no DF. A militarização impõe um modelo autoritário e excludente, contrário ao desenvolvimento integral que buscamos na educação pública de qualidade.

Gudbrandsson, Harris e Todorova questionaram ainda sobre a educação em direitos humanos, a qual sofreu um ataque severo em 2015, quando a menção a gênero e educação sexual foi retirada dos planos municipais de educação e, posteriormente, da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A educação antirracista também é outro tema negligenciado, sem tratamento adequado nas escolas brasileiras.

Invisibilização nas políticas educacionais e nos dados e pesquisas oficiais

Uma das questões estruturais trazidas pelos especialistas, como Pedernera e Gudbrandsson, tratou sobre a falta de informações sobre alguns grupos sociais, em maior situação de vulnerabilidade. Sobre o tema, eu trouxe à tona a questão das infâncias e adolescências invisibilizadas, incluindo quilombolas, indígenas, migrantes, crianças em situação de rua e pessoas com deficiência (PcDs). Esses grupos são os que menos têm dados disponíveis e, consequentemente, os mais excluídos das políticas públicas, inclusive da educação.

Gudbrandsson abordou a educação de pessoas com deficiências. Destaquei o caso da falta de dados para o monitoramento pleno da Meta 4 do Plano Nacional de Educação, sobre inclusão de PcDs na educação. O dado mais recente disponível sobre o tema é de 2010, do Censo Demográfico do IBGE, o que revela um grande vazio informacional.

Por último, Beloff destacou a violência policial que continua a assolar crianças em situação de rua, uma questão não resolvida mesmo após 35 anos de avanços teóricos em proteção infantil. Esse é um dos estudos da Agenda Infâncias e Adolescências Invisibilizadas, que levamos ao conhecimento e disposição dos comissionados: invisibilizadas.org .

A agenda do projeto é composta por oito cadernos com os seguintes eixos (acesse os estudos em cada um dos links):

– em situação de rua;
migrantes;
– residentes em territórios urbanos em situação de violência;
– adolescentes em medidas socioeducativas;
– em áreas de reforma agrária;
– em territórios de agricultura familiar;
comunidades quilombolas;
– e comunidades indígenas.

A lacuna da educação frente a seu papel na justiça climática

Por fim, foi abordada a questão da educação ambiental – diante das calamidades climáticas, que têm tocado todo o mundo e o Brasil, Gudbrandsson, Harris e Todorova questionaram sobre o que o país está de fato cumprindo em relação à crise climática. Infelizmente, as notícias na intersecção com a área da educação não são nada positivas.

Expliquei que temos um Plano Nacional de Educação Ambiental, mas que está praticamente todo descumprido. E, pior: o Ministério da Educação sequer incluiu metas e objetivos em especial voltados à educação ambiental na proposta do novo Plano Nacional de Educação, mesmo com a Conferência Nacional de Educação (Conae) 2024 indicando a sua importância por meio de um eixo inteiro somente dedicado à questão.

Sobre o Comitê e o procedimento de revisão

O Comitê dos Direitos da Criança da ONU é o órgão internacional responsável por monitorar a implementação da Convenção sobre os Direitos da Criança pelos países que a ratificaram. Composto por especialistas independentes, o Comitê realiza revisões periódicas das políticas e práticas de cada país a cada 10 anos, com base nos relatórios enviados pelos governos e pela sociedade civil. Essas revisões são essenciais para avaliar como os direitos das crianças estão sendo garantidos e identificar possíveis falhas ou retrocessos.

O Brasil passou por sua última revisão em 2015, e nós, enquanto sociedade civil, participamos ativamente deste processo. Todas as denúncias e pontos críticos que apresentamos foram cuidadosamente considerados pelos especialistas do Comitê, que puderam questionar o Estado Brasileiro sobre questões fundamentais que afetam diretamente os direitos das crianças e adolescentes no país.

Durante a revisão, elaboramos um relatório em parceria com organizações como Ação Educativa, Anced – Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente, e Conectas. Esse documento, enviado previamente ao governo brasileiro, serviu como base para os questionamentos feitos ao Estado. Ao final da 70ª Sessão, nossa delegação da sociedade civil foi recebida pela Delegação Oficial do Governo Brasileiro para discutir de forma propositiva os temas abordados e pensar em encaminhamentos futuros.

Entre os temas mais discutidos na época, estavam a redução da maioridade penal, as condições das unidades de internação do sistema socioeducativo, os impactos negativos da privatização da educação, os cortes sociais de 2015 e os riscos ao Plano Nacional de Educação (PNE) e à implementação do Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQi). Outro ponto importante foi o aumento da militarização das escolas públicas e os retrocessos na promoção da igualdade de gênero nos planos municipais de educação. Infelizmente, tivemos retrocessos em todos esses pontos, de dez anos para cá.

O Brasil passará, enquanto Estado, pela revisão em janeiro de 2025. Acompanharemos para ouvir o que o governo tem a dizer sobre o que pretende fazer de fato para reverter tantas violações de direitos humanos de crianças e adolescentes, que deveriam ser prioridade absoluta.

Esses debates e questionamentos que aconteceram na Pré-Sessão refletem a importância do papel da sociedade civil nesse processo de monitoramento e de exigência de direitos, reforçando que a educação, enquanto direito fundamental, deve ser constantemente defendida e protegida contra retrocessos.

Essa interação com o Comitê foi crucial para trazer à luz questões que precisam de atenção imediata. A educação no Brasil enfrenta um momento decisivo na tramitação do novo Plano Nacional de Educação, que terá vigência de dez anos, mas com impactos para muito além desse período e para muito além da educação. É essencial que sigamos pressionando para que os direitos das crianças e adolescentes sejam efetivamente garantidos.