O advogado da Apib Mauricio Terena fala à imprensa fora do STF após indígenas deixarem audiência de conciliação. Foto: Tukumã Pataxó / Apib

Na quarta-feira (28/8), houve a segunda audiência de conciliação, convocada pelo ministro Gilmar Mendes, relator de ações judiciais propostas para discutir no STF a inconstitucionalidade da Lei 14.701/23, que trata do “marco temporal” e de outras restrições à demarcação de terras indígenas e ao seu uso delas pelos povos que as ocupam. O destaque da sessão foi o anúncio da saída da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) do processo.

A Apib é autora de uma das ações em discussão e é a única organização indígena, nessa condição, que integrava até então o colegiado instituído pelo ministro para promover essa conciliação. A Apib decidiu retirar-se da instância por causa da informação trazida pelo juiz auxiliar designado para conduzir os trabalhos, Diego Viegas Veras, de que decisões poderiam ser tomadas pela maioria, mesmo não havendo a concordância das partes. Obviamente, isso dá ao processo um caráter de disputa política.

Não se trata de um detalhe, já que o que está em discussão são os direitos constitucionais dos indígenas. Não é concebível uma conciliação que os exclua. A Apib é a única organização indígena de âmbito nacional, até então representada no processo por todas as suas regionais, e tem a sua legitimidade reconhecida pelo próprio STF, inclusive para propor, como é o caso, Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs). Por óbvio, a conciliação só pode resultar do consenso entre as partes envolvidas.

Despreparo

Quando a Apib informou, ainda na primeira audiência de conciliação, no dia 5/8, que iria repensar a sua presença nos trabalhos diante do critério de decisão por maioria, em uma comissão onde os indígenas são minoria, o juiz auxiliar declarou que, nessa hipótese, as audiências seguiriam adiante, com a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) assumindo a representação dos interesses dos povos originários. Essa postura tutelar surpreendeu, por ignorar o Artigo 232 da Constituição, que diz: “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa dos seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo”.

Indígenas deixam audiência da comissão de ‘conciliação’ no STF. Foto: Tukumã Pataxó / Apib

A própria representante da Funai na comissão interveio, imediatamente, para esclarecer que não dispõe de condições legais para substituir a Apib como autora da ação e legítima interlocutora dos direitos em questão. A propósito, na composição da comissão, o Ministério Público Federal (MPF) ficou relegado à condição de observador. O juiz chegou ao extremo da inabilidade política ao dizer que, se a Apib decidisse deixar a comissão, estaria assumindo a responsabilidade pelos conflitos por terra que ocorrem em vários estados…

Nessa segunda audiência, diante do anúncio da decisão da Apib, Veras informou que Gilmar Mendes deve substituí-la por outras representações indígenas, sem esclarecer quais seriam. Essa intenção foi prontamente questionada, já que não cabe substituir a autora do processo de forma discricionária e que não há outra organização indígena de âmbito nacional.

Sem diálogo

Em julho, foi feito um acordo no Congresso para adiar a votação de um projeto que prevê incluir na Constituição o marco temporal até que a conciliação no STF terminasse. A informação que circulou em Brasília é que o entendimento foi precedido por conversas entre representantes dos Três Poderes e outros atores políticos envolvidos – mas não os indígenas. Como se não bastasse, os representantes da Apib foram informados só na primeira audiência sobre o critério de decisão por maioria. 

O STF deve zelar pelos direitos de minorias, como fez na decisão tomada, no ano passado, pela inconstitucionalidade do marco temporal, aprovando 14 teses referentes às terras indígenas. Mas o ministro Gilmar Mendes não acolheu o pedido da Apib para suspender a efetividade da lei até o seu julgamento de mérito, nem mesmo dos artigos sobre o marco temporal e que afetam as teses já definidas pela própria Corte.

Os ministros do STF devem reconhecer que, do ponto de vista dos povos e dos representantes indígenas, as sinalizações que vêm sendo dadas na condução desse processo não são acolhedoras. Tampouco é trivial submeter direitos fundamentais à conciliação judicial. Pode-se questionar se a decisão da Apib foi a melhor, mas ela não é uma surpresa.

A indefinição da pauta do que deve ser conciliado também esfumaça o horizonte. A conciliação deveria focar na efetividade do que o STF já decidiu e na análise dos dispositivos da lei que ainda não foram discutidos, o que não é pouca coisa. Mas a inclusão de casos específicos e outros temas em trâmite no STF abre margem para todo tipo de incerteza. Por exemplo, foi incluída entre as ações que originaram o processo de conciliação uma que requer a regulamentação do Artigo 231 da Constituição, quanto à pesquisa e lavra de minérios em terras indígenas e outras exceções ao direito de uso exclusivo dos indígenas aos recursos naturais de seus territórios, segundo o “relevante interesse público da União”.

Hipoteticamente, parte da agenda que realmente interessa para resolver o problema das demarcações, como a questão da indenização pela terra a ocupantes com títulos válidos (além das benfeitorias realizadas nessas áreas), até poderia ser considerada “briga de branco”, o que demandaria um acordo sobre procedimentos administrativos interinstitucionais e sobre a disponibilidade de terras e de recursos financeiros para cobrir indenizações e outros custos envolvidos. As condições de funcionamento da câmara de conciliação colocadas até agora, porém, afastam completamente essa possibilidade. 

Indígenas acompanham audiência de ‘conciliação’ no STF. Foto: Tukumã Pataxó / Apib

Redução de danos

A partir de uma conciliação que fosse realmente confiável e inclusiva, seria necessário pactuar entre governo federal, Congresso, estados e proprietários rurais providências articuladas e orientadas para soluções, evitando esvair energias numa espiral de conflitos crônicos.

Em tese, o Congresso poderia prover leis que facilitem esse processo, além de lembrar dele na hora de apreciar o orçamento anual da União. O governo poderia criar fundos específicos, acessar novas fontes de recursos e articular parcerias com os estados, para compartilhar a solução dos passivos acumulados. O STF poderia validar e avaliar os avanços dessa concertação.

O pior descaminho seria promover representações oportunistas e artificiais, interferindo nas relações internas do movimento indígena, no afã de substituir a Apib. Essa prática não tem precedente na atuação do STF frente aos direitos indígenas e agravaria as condições de legitimidade do processo em curso. Seria típica dos mesmos extremistas que defendem a cassação de ministros e ameaçam reduzir os poderes do STF.

Talvez haja tempo para repor o sentido dessa conciliação. Quem sabe, começando pelo começo. O presidente Barroso poderia se dispor a conversar com os representantes da Apib sobre condições para se reintegrarem ao processo. O mais importante é a busca por convergências, sem ferir direitos ou interesses das partes, inclusive dos indígenas. E, provavelmente, as pendências a serem dirimidas chegariam melhor qualificadas à decisão do plenário do STF.

Ao centro, o juiz auxiliar Diego Viegas Veras. Foto: Gustavo Moreno / STF